Três documentários lançados em 2020 pela Netflix — o filme Atleta A e as minisséries Quarto 2806: A Acusação e O Estripador — mostram como o machismo estrutural é nocivo. Contam histórias de mulheres e adolescentes abusadas, silenciadas, difamadas, assassinadas. Em vez de acolhimento e proteção diante das denúncias e dos crimes, viraram alvo da zombaria, do descaso e de erros cometidos pelas autoridades, às vezes com anuência ou colaboração da imprensa (embora em uma dessas obras jornalistas tenham sido decisivos para trazer o mal à tona e à justiça). Vítimas, foram submetidas a escrutínios morais e a punições.
Foi o que aconteceu com a ginasta americana Maggie Nichols, hoje com 23 anos, uma das entrevistadas dos diretores Bonni Cohen e Jon Shenk em Atleta A (Athlete A). Mesmo depois de encarar uma grave lesão, ela tinha grande chance de conquistar uma vaga no quinteto dos Estados Unidos que disputaria a Olimpíada do Rio, em 2016. Na seletiva, ficou no sexto lugar geral. Em tese, poderia ter sido uma das três reservas, mas não foi chamada. Nas arquibancadas, seus pais sentiam que aquele era um jogo de cartas marcadas. Ao contrário do que ocorrera em todos os eventos oficiais anteriores, ao contrário do que estava ocorrendo com as famílias de todas as demais competidoras, não havia câmeras de TV acompanhando as reações dos Nichols.
A poderosa Federação de Ginástica dos EUA, a US Gymnastics, jamais admitiu, mas fica evidente que Maggie Nichols sofreu represália por ter se queixado do médico Larry Nassar em 2015. O presidente da entidade à época, Steve Penny, nunca levou o caso à polícia, desobedecendo a legislação sobre violência sexual. Mas Maggie, para o bem ou para o mal, não estava sozinha: mais de cem ginastas foram abusadas por Nassar, que posava como o cara simpático em um esporte pautado por treinadores rigorosos e rotinas extenuantes. Seu modus operandi incluía doces escondidos debaixo dos travesseiros e penetração vaginal e anal com os dedos.
Cotado ao Oscar de melhor documentário, Atleta A recupera a trajetória de outras vítimas, como a corajosa Rachael Denhollander e a medalhista olímpica Jamie Dantzscher, intercalando a narrativa com o trabalho dos repórteres do jornal Indianapolis Star, que publicou as primeiras denúncias. Entre uma coisa e outra, o filme explica como a ginástica artística tornou-se um ambiente propício para predadores sexuais e critica a cultura americana do sucesso a qualquer preço.
Os Estados Unidos também são o cenário principal da minissérie Quarto 2806: A Acusação. Os quatro episódios investigam o escândalo sexual que, em 2011, derrubou o então diretor-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI) e favorito nas pesquisas para derrotar o presidente da França, Nicolas Sarkozy, nas eleições daquele ano. Dominique Strauss-Kahn, hoje com 71 anos, foi acusado de violentar a camareira de origem africana Nafissatou Diallo no hotel Sofitel, em Nova York.
Dirigido pelo francês Jalil Lespert, da cinebiografia Yves Saint Laurent (2014), o documentário não toma partido e procura ouvir os dois lados. O primeiro capítulo dá mostras do quão complexo é o caso (há suspeitas de algum tipo de armação) e suas ramificações, e do quão intrigante é o seu personagem mais reluzente: o quarto 2806 foi apenas a porta de entrada para um mundo em segredo habitado por Strauss-Kahn. Na verdade, nem tão secreto.
Apesar de casado com Anne Sinclair, famosa por entrevistar personalidades políticas como François Mitterrand, Bill Clinton e Mikhail Gorbachev em seu programa de TV na TF1 e herdeira da fortuna de um colecionador de arte, o economista era dado a escapadas sexuais, assédio a subordinadas e jornalistas e, segundo o depoimento de uma prostituta, violência na cama. Mas ao mesmo tempo em que Nafissatou teve seu passado revirado por advogados de defesa, tabloides e até os promotores, não faltou gente — homens, em sua grande maioria — fazendo vista grossa para o comportamento de Strauss-Kahn.
Por fim, temos outra minissérie em quatro episódios, sobre o maior serial killer do Reino Unido, que só matava mulheres e tinha o apelido de O Estripador (The Ripper). Mas não se trata do célebre Jack, que cometeu pelo menos cinco assassinatos na Londres de 1888. O facínora em questão ceifou 13 vidas entre 1975 e 1980, no norte da Inglaterra, sobretudo nas cidades de Leeds, Manchester e Bradford. E ao contrário do serial killer vitoriano, que nunca foi capturado nem teve sua identidade descoberta, o Estripador de Yorkshire foi preso e inclusive morreu na cadeia — em novembro passado, em uma sexta-feira 13, vítima de covid-19.
Codirigido por Jesse Vile e Ellena Wood, O Estripador mostra que a demora da polícia para pegar Peter William Sutcliffe deveu-se a uma combinação entre machismo e achismo. Desde os primeiros corpos, encontrados perto de uma zona de prostituição, as autoridades e a imprensa — majoritariamente masculinas — assumiram a versão de que o matador era um novo Jack. As vítimas, portanto, eram descritas como mulheres no mínimo promíscuas. Mentira: Sutcliffe atacava indiscriminadamente, de adolescentes a mães de família. Mais tarde, o comando policial acreditou piamente em uma fita cassete enviada pelo suposto Estripador de Yorkshire. Se não fosse a sucessão de equívocos, algumas mortes teriam sido evitadas.
Mas O Estripador, Quarto 2806 e Atleta A não focam apenas no lado sombrio. Também enfatizam a importância de casos assim para transformações na sociedade (e o escândalo Larry Nassar mudou a forma como a ginástica americana vinha sendo conduzida). Encorajadas, jovens americanas foram aos tribunais e aos jornais para revelar as agressões sofridas. Ameaçadas, mulheres saíram às ruas na Inglaterra da década de 1970. Pediam o fim da culpabilização das vítimas e da disseminação de ideias preconcebidas dos homens sobre as mulheres — pediam que fossem ouvidas e respeitadas.
— A investigação do Estripador de Yorkshire foi um estopim para as mulheres começarem a revidar e dizer: "Por que não podemos sair às duas horas da madrugada sem ter de nos preocupar com ataques? Houve um efeito radical em toda uma geração feminina — diz a jornalista Joan Smith na minissérie inglesa.
Nos anos 2010, nos EUA e na França, mulheres foram novamente às ruas, novamente para reclamar da culpabilização das vítimas, agora, de estupro, para cobrar que o poder econômico e/ou o prestígio político não cale as denúncias, para exigir que estupradores não saiam impunes como manda a tradição. Ou como costuma mandar a tradição.
— Nunca vou poder viver minha vida normalmente. Nunca vou poder esquecer o que aconteceu — diz em Quarto 2806 a escritora francesa Tristane Banon, sobrevivente de uma tentativa de estupro por parte de Strauss-Kahn quando tinha 23 anos. — Talvez seja muita presunção, mas acho que o movimento #MeToo (que ganhou força em 2017, quando explodiram as acusações contra o oscarizado produtor de cinema Harvey Weinstein, hoje preso) não teria acontecido se não fosse por mim e pela Nafissatou Diallo. Isso me dá algum conforto, porque me faz sentir que não foi em vão.
Para ver/ler também
Bem-Vindo a Nova York — Dirigido pelo americano Abel Ferrara, o filme lançado em 2014 é uma ficção claramente baseada no caso Dominque Strauss-Kahn. Gérard Depardieu tem grande atuação na pele do nojento Devereaux, diretor do FMI cotado para concorrer à presidência da França e que é sexualmente insaciável. Usa de sua força física e de seu poder econômico para ser agressivo com as mulheres. Disponível no Google Play e no YouTube.
Desconstruindo Una — Nesta história em quadrinhos simultaneamente delicada e cortante, as traumáticas memórias de uma inglesa que sofreu abuso sexual, por três homens diferentes, na infância e na adolescência são entrelaçadas à investigação sobre o Estripador de Yorkshire. Una, a protagonista e autora, reflete sobre como é crescer em uma cultura na qual a violência masculina não é punida, sequer questionada. Editora Nemo, tradução de Carol Christo, R$ 59,80.