O título brasileiro é tão comum que é quase o mesmo de outro filme em cartaz em Porto Alegre (Era uma Vez em Nova York, de James Gray). Mas Bem-Vindo a Nova York, de Abel Ferrara, tem uma personalidade que o coloca em destaque na comparação com qualquer outro longa contemporâneo - mesmo os anteriores de seu cultuado e um tanto excêntrico diretor, que entre outros assina o novo clássico Vício Frenético.
Sem-vergonha e sem vergonha, Gérard Depardieu tem uma das atuações de sua vida como o diretor francês do FMI cotado para concorrer à presidência de seu país que compromete toda a sua carreira ao assediar sexualmente a camareira de um hotel nova-iorquino - qualquer semelhança com o caso de Dominique Strauss-Kahn, em 2011, não é coincidência, como evidenciam os letreiros no início da projeção.
No filme, o personagem se chama Devereaux e é sexualmente insaciável. Não apenas isso. É agressivo com as mulheres, aproveitando sua força física e seu poder econômico para subjugá-las - das mais variadas formas, mas sobretudo relacionadas ao sexo. O recado é claro: como o inesquecível Saló ou 120 Dias de Sodoma (1975), de Pier Paolo Pasolini, o abuso carnal simboliza as relações de exploração social.
Depardieu escancara a escrotidão de Devereaux em todos os trejeitos - da respiração carregada ao desprezo pelos sentimentos alheios, aí incluídos os de sua mulher (Jacqueline Bisset) e sua filha (Marie Moute). Na primeira sequência do filme, o ator demonstra distanciamento do personagem, falando sobre ele numa entrevista. Na parte final, já devidamente transformado naquele executivo imoral que aprendemos a odiar ao longo de mais de duas horas de projeção, chega a olhar para a câmera para "mandar recados" ao público.
O efeito dessa aproximação para com Devereaux é estimulante, ainda que, para os menos pacientes, Bem-Vindo a Nova York possa, às vezes, ser considerado arrastado. Há espaço para piadinhas (com relação ao caso de abuso sexual de Roman Polanski) e citações (ao Antoine Doinel de François Truffaut), mas Ferrara não se curvou. Para mostrar a nojeira, não tem medo de ser nojento. Para escancarar a degradação, não tem receio nenhum de soar desagradável.
Graças à absoluta falta de concessões, fez um filme que é, desde já, um dos melhores do ano.
Bem-Vindo a Nova York
(Welcome to New York)
De Abel Ferrara. Com Gérard Depardieu, Jacqueline Bisset e Marie Moute.
Drama, EUA, 2014. Duração: 125 minutos. Classificação: 18 anos.
Cotação: 4 estrelas (de 5)
PRESTE ATENÇÃO
Cultuado diretor de Bem-Vindo a Nova York, Abel Ferrara será homenageado na Sessão Aurora deste sábado. Às 19h, com entrada franca, a Sala P.F. Gastal da Usina do Gasômetro exibe O Vício (The Addiction, 1995), que será comentado pelos editores do Zinematógrafo.