M8: Quando a Morte Socorre a Vida, em cartaz na Netflix e no Now a partir desta quarta-feira (24), foi um dos muitos filmes da temporada 2020 (estendida para 2021 por causa da pandemia) que abordaram o racismo.
Dos EUA, vieram ou estão chegando A Voz Suprema do Blues, Uma Noite em Miami, Estados Unidos vs Billie Holiday, Judas e o Messias Negro — todos concorrentes ao Globo de Ouro, neste domingo (28) —, Destacamento Blood e The 40 Year Old Version. Podemos assistir também aos documentários Até o Fim: A Luta pela Democracia, Time, MLK/FBI e Vozes que Inspiram, sendo que os três primeiros estão na pré-lista do Oscar.
O Brasil respondeu com pelo menos cinco títulos. Assim como M8, disputaram a chance de representar o Brasil no Oscar de melhor filme internacional (o escolhido foi o documentário Babenco) Casa de Antiguidades e Todos os Mortos. Houve ainda a ficção Cabeça de Nêgo e o documentário do Emicida, AmarElo.
Premiado pelo público no Festival do Rio de 2019 e recém eleito pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) como o melhor filme nacional de 2020 (empatado com Sertânia, de Geraldo Sarno), M8 iria estrear nos cinemas de Porto Alegre na semana em que a pandemia forçou o segundo fechamento das salas, no início de dezembro. Agora, enfim, os gaúchos podem ver o mais recente trabalho de um cineasta de São Paulo que tem uma carreira vitoriosa no Rio Grande do Sul. Jeferson De, 53 anos, sempre saiu do Festival de Gramado com kikitos nas mãos. O curta-metragem Carolina (2003), sobre a escritora Carolina de Jesus (interpretada por Zezé Motta), ganhou como melhor filme e melhor fotografia da categoria, além do troféu da crítica. Bróder (2010), seu primeiro longa — sobre o reencontro, na juventude, de três amigos que cresceram em um bairro pobre — faturou cinco estatuetas: filme, diretor, ator (Caio Blat), montagem e trilha sonora.
Jeferson é o criador do Dogma Feijoada, versão do Dogma 95, movimento estético dinamarquês que pregava um cinema mais realista. O manifesto de Jeferson estipulava que: diretor e protagonista devem ser negros; a temática tem de estar relacionada à cultura afro-brasileira; personagens estereotipados estão proibidos; e super-heróis e bandidos devem ser evitados.
O cineasta vem expandindo o Dogma Feijoada: ao experimentar gêneros distintos, ele mostra que não existe "um" cinema negro. Há vários, embora todos carreguem um posicionamento político.
No drama Bróder, a violência não tem o protagonismo característico de filmes sobre a periferia. A comédia Correndo Atrás (2018), que retrata o universo do futebol, é definido pelo diretor como "uma ode à alegria", em contraste com a rotina associada às favelas por cineastas brancos. Agora em M8, Jeferson De retoma a seriedade e envereda pelo suspense sobrenatural, mas tratando de problemas bem reais.
O racismo estrutural é o alvo nesta adaptação do romance homônimo de Salomão Polak. O personagem principal, Maurício, é o único negro na turma de Medicina de uma faculdade do Rio. Na aula de anatomia, ele fica intrigado pelo fato de todos os corpos serem de pessoas negras. Tem mais a ver com os mortos do que com os vivos, reflete o filho de uma auxiliar de enfermagem.
O elemento fantástico logo dá as caras (mas não espere algo como Corra! ou O que Ficou para Trás, a pegada é mais leve): Maurício passa a ter alucinações a respeito de um dos cadáveres, o M8 do título. O jovem não vai sossegar até encontrar a identidade daquele homem, como não sossegam as mães negras enquanto não encontram os corpos de seus filhos, tombados pela violência do tráfico ou da polícia.
No meio da jornada, Maurício vai se envolver com uma colega branca (Suzana, papel de Giulia Gayoso), discutir as cotas raciais nas universidades, sofrer com o preconceito ostensivo e o quase velado, aprender algo sobre ancestralidade e religiosidade e lidar com sua própria revolta. Parece muito para um filme com menos de uma hora e meia de duração, mas M8 tem um desenvolvimento suficientemente harmonioso graças à alternância dos pontos de interlocução para o protagonista vivido por Juan Paiva (o jogador de futebol Glanderson de Correndo Atrás).
Por falar em futebol, o elenco é um time dos sonhos. Jeferson De conjuga diferentes gerações. Visto como o tetraplégico Wesley da novela Totalmente Demais (2015-2016), Juan, 22 anos, contracena com Léa Garcia, 87, e Zezé Motta, 76, duas figuras históricas do cinema sobre a negritude brasileira. Mariana Nunes, 40, interpreta sua mãe, e Aílton Graça, 56, e Rocco Pitanga, 40, são os funcionários que fazem a limpeza na sala de anatomia. Até o defunto encarnado por Raphael Logam, 35, indicado ao Emmy Internacional pelo Dendê da série Impuros, é eloquente, apenas com sua presença física e seu olhar. Quem também não precisa dizer nada para trazer gravidade à cena é Lázaro Ramos, 42. Em uma participação silenciosa, ele conduz M8 a um antológico final, marcado por morte, dor e indignação, mas também por afeto, união e respeito.