Cidade Invisível, a nova série brasileira da Netflix, segue firme e forte no top 10 da plataforma de streaming (na terça-feira, 16, era a segunda atração mais assistida). O interesse do público se justifica: depois de obras que trouxeram uma roupagem contemporânea para a mitologia nórdica (Ragnarok), para os contos de fadas (Grimm) e para divindades tão velhas quanto o mundo (American Gods, ou Deuses Americanos), que tal explorar, de forma parecida, o rico folclore do nosso país?
É o que propõe, com semelhanças nítidas em relação às três séries citadas acima, Cidade Invisível. Trata-se da mistura de um suspense policial com o descobrimento de um mundo oculto — daí o título.
O protagonista é Eric Alves (interpretado por Marco Pigossi, da novela A Força do Querer, em reprise na RBS TV), um detetive da polícia ambiental. Logo na abertura, uma tragédia familiar vai se abater sobre sua vida pessoal, enquanto, na esfera profissional, ele precisa lidar com o misterioso surgimento de um boto cor-de-rosa — morto — em uma praia do Rio de Janeiro. Evidentemente, as duas coisas estão conectadas. Logo vamos deparar com versões urbanas do Saci (Isac, encarnado por Wesley Guimarães), da Cuca (Inês, papel de Alessandra Negrini), Curupira (Iberê, na pele de Fábio Lago), Iara (a Camila de Jéssica Córes) e Tutu Marambá (Jimmy London). A representação desses personagens simboliza um dos acertos da série: a ideia de que renegamos nossa cultura, marginalizamos nosso folclore, escondemos, sob o manto de um suposto progresso, as tradições e a própria natureza, cada vez mais ameaçada (em uma das subtramas, uma empreiteira quer desalojar uma comunidade ribeirinha).
— Temos esperança de que o brasileiro consiga se reconectar com o folclore, que se envolva nessa redescoberta — disse o criador de Cidade Invisível, o cineasta Carlos Saldanha. — E também de que o Exterior possa ter curiosidade de descobrir um pouco da gente. Se a gente consome as coisas de lá, American Gods, Vikings, por que não consumir o que é daqui?
A propósito de Saldanha, para espectadores que acompanham a carreira do diretor de três segmentos da franquia de animação A Era do Gelo (2002-2016) e dos desenhos Rio (2011) e Rio 2 (2014) também havia a curiosidade de ver sua estreia com atores de carne e osso. Na verdade, o carioca é apenas o criador e o produtor executivo de Cidade Invisível. O roteiro, escrito a várias mãos, baseia-se em uma história de Raphael Draccon e Carolina Munhóz, autores de livros de fantasia e da série da Netflix O Escolhido (2019), adaptação de uma produção mexicana para o cenário do Pantanal. Para a direção dos episódios, Saldanha chamou Luis Carone (de Pico da Neblina) e Júlia Jordão (de O Negócio).
O número de cabeças envolvidas (ao todo, foram 10 roteiristas para sete episódios) não é incomum, mas parece ter provocado um impacto negativo. Falta unidade a Cidade Invisível.
Isso transparece no abandono das subtramas e dos personagens. Em tese importante, como um dos vilões, o empreiteiro mal dá as caras. Aliás, a partir da entrada em cena de uma entidade maligna, a série deixa de lado o conflito entre capitalismo predatório e misticismo ecológico, além de praticamente isentar as pessoas (nós) do que está ocorrendo com os mitos — uma contradição em relação à premissa.
Já o simpático Saci surge como o condutor da filha de Eric, a menina Luna (Manu Dieguez), pelo universo fantástico, mas logo é relegado a segundo plano, chegando a desaparecer de alguns episódios. De forma geral, os arcos dramáticos das lendas não são bem desenvolvidos: sabe-se a motivação de um, a origem de outra, e o resto não evolui ou perde espaço para uma trama policial muito convencional, sem surpresas.
Essa carência de aprofundamento foi percebida também pelos críticos dos Estados Unidos, onde Invisible City igualmente atrai os usuários da Netflix. Um dos chamarizes, o geográfico, pode ser considerado controverso.
Apesar de vários personagens folclóricos estarem ligados às regiões Norte, Nordeste e Sul, Carlos Saldanha resolveu ambientar Cidade Invisível em um Rio de Janeiro de cartão-postal — vide o Pão-de-Açúcar ao fundo na cena em que Eric encontra o boto na praia, vide a Lapa, o bairro boêmio onde a Cuca urbana é dona de um bar.
Por outro lado, a série inventou a Vila Toré, uma floresta no Rio que claramente finge ser a da Amazônia, centro de atenções estrangeiras nos últimos tempos por causa do desmatamento. Ou seja, o Brasil de Saldanha é um Brasil para gringo ver.
É verdade que a presença de lendas do Norte no Rio indica o poder de abrangência desses mitos, muitos deles de origem africana ou indígena e difundidos oralmente. Mas Cidade Invisível, pelo menos em sua primeira temporada, pouco reflete sobre a história do país e dá pouca voz a Saci, Curupira e companhia. No fundo, Cidade Invisível acaba fazendo justamente aquilo que critica: escanteia os personagens folclóricos, só tirando-os da imobilidade dramática quando for conveniente à trajetória de Eric.
Tanto pior que o protagonista seja antipático, em parte por causa do próprio papel, em parte por causa de seu ator. Outro crítico já disse e eu concordo: não importa se está interagindo com a filha, se está reagindo a revelações ou se está agindo em cena, Marco Pigossi tem a mesma expressão. Também ele parece uma figura estática.