WandaVision, a primeira série da Marvel no Disney Plus, é a um só tempo saudosista e inovadora.
Por um lado, a obra criada pela roteirista Jac Schaeffer (a mesma do vindouro filme da Viúva Negra) presta uma homenagem à história da TV americana. Por outro, essa celebração permite romper com a fórmula que vinha sendo adotada nas adaptações dos quadrinhos dos superseres da empresa — não temos mais a jornada do herói, sequer está claro quem é o vilão, e se no cinema os momentos de tolice trazem alívio cômico até para tramas apocalípticas (vide as duas últimas aventuras dos Vingadores), aqui inverte-se a mão: a gravidade vai ganhando terreno sobre o humor.
Trata-se de um seriado exigente para com o espectador — precisamos conhecer o passado dos personagens (surgidos, no cinema, em Vingadores: A Era de Ultron, de 2015) para compreender que há algo de muito estranho acontecendo, e precisamos conhecer o passado da teledramaturgia dos Estados Unidos para compreender as referências, que não têm nada de gratuitas: acrescentam camadas, criam expectativas, intensificam o mistério.
No primeiro episódio, Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen), a Feiticeira Escarlate, e o androide Visão (Paul Bettany) são apresentados como um típico casal dos subúrbios norte-americanos. No caso, Westview, no Estado de Nova Jersey, onde os demais 3 mil e pouco moradores desconhecem os superpoderes dos vizinhos — manipular com a mente objetos e pensamentos no caso dela, ficar intangível ou resolver num átimo a burocracia do trabalho no caso dele. As cenas são em preto e branco, e o tom de comédia romântica é acentuado pelas risadas da plateia, a claque, e pela duração da história (menos de meia hora). É uma alusão aos clássicos I Love Lucy (1951-1957) e The Dick Van Dyke Show (1961-1966).
O segundo capítulo avança no tempo e nos costumes. A inspiração vem de A Feiticeira (1964-1972) e Jeannie É um Gênio (1965-1970). O terceiro troca o PB pelas cores, muda a decoração da sala de estar e acrescenta uma escada à casa de Wanda e Visão, que estão para virar uma família. Agora estamos nos anos 1970, época de The Brady Bunch (1969-1974), antológica sitcom familiar, e Mork & Mindy (1978-1982), que revelou Robin Williams no papel de um extraterrestre que tentava compreender o comportamento dos humanos — situação repetida pelo Visão, mas que também encontra eco em Wanda. Sim, porque nitidamente ela é um peixe fora d'água em Westview, tentando se adequar a essa nova realidade.
E aí voltamos à questão do grau de informações pré-requisitadas ao público. Acredito que não seja spoiler, mas dei uma enroladinha para lembrar que o Visão está morto. Duplamente morto. No filme Vingadores: Guerra Infinita (2018), primeiro a própria Wanda tirou da testa dele a Joia da Mente, um sacrifício para impedir que o megavilão se apossasse da pedra. Depois, foi a vez de Thanos reconstituir o androide para destruí-lo outra vez.
Só que, na série do Disney Plus, o Visão não sabe nada disso. Como se fosse Jim Carrey no filme O Show de Truman (1998), outra referência nítida em WandaVision, ele até intui que há algo de esquisito na sua existência ou, pelo menos, na vizinhança — na qual se destaca a enxerida e divertida Agnes (Kathryn Hann) —, mas, com o perdão do trocadilho, está longe de ter a visão do todo (assim como o espectador; falaremos sobre isso mais adiante).
Wanda, ao contrário, sabe mais do que nos mostra. Parece inclusive ser a diretora dessas versões sitcom que reinventaram seu cotidiano familiar — há uma cena genial em que, no meio de uma discussão séria com Visão, os créditos sobem na tela, como se Wanda tivesse urgência em encerrar o assunto.
É apenas no quarto episódio, com o olhar de fora sobre Westview, que alguns dos mistérios apresentados nos três anteriores começaram a ser desvendados e conexões com os filmes da Marvel são feitas. Mas até chegarmos a esse capítulo, passaram-se duas semanas (os dois primeiros foram disponibilizados na estreia, em 15 de janeiro), tempo suficiente para atiçar a curiosidade do público. Fãs da série foram buscar pistas nos quadrinhos da Marvel com participação dos super-heróis, como Dinastia M (2005), escrita por Brian Michael Bendis e desenhada por Olivier Coipel, em que uma traumatizada Wanda recria não apenas a sua realidade, mas a de todo o mundo; e Visão (2015-2016), minissérie do roteirista Tom King e do artista Gabriel Hernandez Walta em que o personagem título, na tentativa de ser humano, constrói uma família em um subúrbio norte-americano. Fãs caçam mensagens nos cenários e no elenco de cada episódio — a propósito: Agnes, a vizinha intrometida, pode ser um anagrama de Agatha Harkness, bruxa que, nos gibis, foi mentora da Feiticeira Escarlate. Fãs inundam a internet e as redes sociais com comentários e teorias a cada sexta-feira, dia em que um novo capítulo é lançado (o site Jamesons, por exemplo, encabeçado pelo jornalista gaúcho Marcos Heck, vem listando easter eggs e mapeando possibilidades).
Podemos dizer, portanto, que o saudosismo de WandaVision não está restrito à tela. Como nos bons tempos de 24 Horas e Lost, para citar dois exemplos de séries que causavam ansiedade e/ou especulações, a atração da Marvel no Disney Plus reforça os benefícios da distribuição semanal dos episódios (o nono e último vai ao ar em 5 de março). Se a estratégia frustra os maratonistas, acaba sendo vantajosa tanto para a obra quanto para o público sem o mesmo fôlego. Em primeiro lugar, dá mais tempo de vida para a série. Cada capítulo vira um acontecimento, gera repercussão. Ao contrário do que costuma ocorrer com os seriados despejados por inteiro, cuja febre tende a durar apenas alguns dias. Em segundo lugar, tira dos ombros do espectador a pressão para assistir a tudo atabalhoadamente, sem pausa para refletir, combatendo o sono para não perder o trem do "hype" — o estrangeirismo que se adotou para substituir "dando o que falar" — e não ficar tão exposto a spoilers nas mídias sociais.
E não faltam, a cada episódio de WandaVision, surpresas daquelas que nos fazem correr para compartilhar a alegria ou o espanto com os amigos. Apesar de treinados, acho que muitos de nós (especialmente os que fogem de notícias prévias ou exercícios de futurismo) não estávamos preparados para o que vimos no quinto episódio. Ok, dada a evolução cronológica das homenagens às comédias da TV norte-americana e a conexão genética da atriz Elizabeth Olsen, era de se esperar que, na vez de citar a década de 1980, a roteirista Jac Schaeffer se apoiasse sobre Três É Demais (Full House, 1987-1995). O visual, a sequência de abertura e a interação dos personagens dentro do lar remetem ao seriado que lançou as gêmeas Mary-Kate Olsen e Ashley Olsen, irmãs mais velhas de Elizabeth. Mas a visita que a família recebe ao final do quinto capítulo foi chocante.
ALERTA DE SPOILERS NO PARÁGRAFO ABAIXO.
Acontecimentos do sexto e do sétimo deram indícios de que tudo não passou de uma ilusão para os personagens e de um evento midiático para provocar barulho na internet. Paciência. O que importa é que, ao abrir a porta de casa, Wanda uniu mundos — nem que seja por aquele único instante. Do outro lado, estava o irmão gêmeo da Feiticeira Escarlate, Pietro Maximoff, também conhecido como Mercúrio por conta de seu superpoder, a velocidade. Mas não era o Pietro que surgiu e morreu em Vingadores: A Era de Ultron, interpretado por Aaron Taylor-Johnson, e sim o Peter Maximoff encarnado pelo ator Evan Peters nos filmes dos X-Men produzidos pela Fox! Ou seja, de uma tacada só, WandaVision foi vanguardista e nostálgica, para retomar a ideia do início desta resenha. Simultaneamente, acenou com a tão sonhada inserção dos personagens mutantes no universo cinematográfico — e agora também televisivo — da Marvel e jogou com a memória dos leitores de gibis. O lance da visita inesperada lembrou os famosos crossovers que marcaram o mercado americano de quadrinhos nos anos 1990, quando as duas grandes editoras do gênero, a DC e a Marvel, deixavam a rivalidade de lado para promover o encontro (nem sempre amistoso, é claro) de seus super-heróis. Terminamos o episódio querendo saber quem está por trás da aparição de Pietro —ou quem está por baixo de Pietro — e o quão literal ou figurado é o sentido da única frase proferida por ele:
— O irmão perdido pode abraçar a irmã fedorenta até a morte?
O sexto episódio — que cita Malcolm in the Middle, seriado cômico dos anos 2000 sobre um adolescente genial, filho do meio de uma família bem disfuncional — não resolveu esse enigma, mas abriu mais portas. Ou portais. E o sétimo, exibido nesta sexta-feira (19), com referências a Modern Family (Wanda está, claramente, imitando Claire Dunphy em um momento de desgaste, descontrole e desabafo), mostrou que alguns coadjuvantes são bem mais poderosos e importantes do que pareciam ser.