Bateu uma saudade desgraçada de 24 Horas quando assisti a A Máfia dos Tigres. A associação não teve a nada a ver com o enredo nem com os personagens. É que, na série documental da Netflix, cada final de capítulo deixa um gancho irresistível para o próximo. Tal qual acontecia com Jack Bauer e seus amigos e inimigos (ou as duas coisas ao mesmo tempo), que podem ser revistos no Amazon Prime Video.
Lembro que, naquelas priscas eras do começo do século 21, ao longo de 24 segundas-feiras deixava o videocassete gravando os episódios enquanto ia jogar futebol. Ao voltar, devorava o episódio e uma pizza (nada disso existe mais: seriados com 24 episódios, a pizzaria da qual eu pedia, o VHS e eu jogando bola).
Lembro que, em um tempo pré-redes sociais, não corria riscos de pechar em um spoiler – embora um querido amigo tenha me acertado com O SPOILER sobre o final da primeira temporada.
Lembro que o último episódio da segunda temporada me deixou, literalmente, ofegante – para mim, ainda é uma das cenas mais marcantes dos seriados. De todos os seriados.
Lembro de frases de efeito – a minha preferida é da sexta temporada, por dimensionar o tamanho atingido pelo protagonista: "Senhor presidente, com todo o respeito, você me deve uma".
Lembro de como o metálico e sinistro som do relógio digital que assinalava a passagem de cada segundo, antes e depois de cada intervalo, tornou-se uma trilha sonora mental para momentos de tensão.
Lembro da delícia de ouvir o celular de um colega que tocava como os telefones da CTU, a fictícia unidade de combate ao terrorismo, lembro do vocabulário dos funcionários da CTU ("soquete", "criptografado", "PDA"), lembro das piadas que fazíamos sobre o RH da CTU – afinal, toda hora tinha um espião lá dentro –, lembro da tristeza de ganhar uma camiseta da CTU que era apertada demais (a guardei por um bom tempo, na vã esperança).
Lembro que, a certa altura, a brincadeira virou tentar antecipar as reviravoltas, decifrar quem seria o elo fraco ou o traidor da vez, que rival político dos Estados Unidos seria provocado – aliás, as teorias conspiratórias sobre o "vírus chinês" também remetem àquele tempo em que um único homem poderia salvar o mundo em apenas 24 horas.
Interpretado por Kiefer Sutherland, Jack Bauer personificou o sentimento americano pós-11 de Setembro. A primeira temporada do seriado, em 2001, começou a ser produzida antes dos ataques ao World Trade Center e ao Pentágono, mas "anteviu" a explosão de um avião comercial por terroristas. Por conta dessa mórbida coincidência, sua estreia, que se daria ainda em setembro daquele ano, foi adiada para 6 de novembro.
24 Horas oferecia aos Estados Unidos a chance de evitarem o 11 de Setembro. O formato da ação em tempo real traduzia a urgência na busca por Osama Bin Laden e outras cabeças da Al-Qaeda. A cada temporada, Bauer e os demais agentes da CTU precisavam descobrir e interceptar uma grande ameaça ao país: bomba nuclear, vírus letal, atentado ao presidente, gás venenoso...
A série bebeu da cultura do medo que marcou os governos de George W. Bush (de janeiro de 2001 a janeiro de 2009), mostrando muçulmanos, russos, chineses, africanos e até mexicanos como inimigos. Graças aos métodos empregados pelo protagonista – que incluía a tortura de seu próprio irmão –, foi acusada de validar a guerra ao terror deflagrada por Bush. Um levantamento da organização sem fins lucrativos Human Rights First contou, ao longo de 120 episódios, 67 cenas de choques elétricos, sufocamento com sacos plásticos, apunhalamento com bisturis aquecidos e outras formas de coerção, perpetradas não apenas pelos bandidos, mas também pelos mocinhos.
Por outro lado, Bauer sentia o peso moral do mantra "os fins justificam os meios", tornando-se, paulatinamente, um personagem trágico. Não é bolinho estar sempre em situações-limite: decidir entre a vida de um e a vida de milhares, entre a vida de um colega e a vida de um terrorista, entre sua própria vida e a de outros.
O seriado também batia nos americanos, retratando conspirações na Casa Branca e maquinações político-econômicas para lucrar com a turbulência mundial – empresários da ultradireita, ligados à indústria petroleira do Oriente Médio, estiveram entre os vilões. Além disso, o fictício presidente David Palmer, vivido com honradez por Dennis Haysbert, pode ter contribuído para fixar no imaginário dos americanos a ideia de eleger, em novembro de 2008, o primeiro presidente negro, Barack Obama – democrata como o mandatário de mentirinha.
Lembro de todas essas conexões com a realidade e me dou conta de que como hoje, apenas seis anos depois da última aparição de Jack Bauer, 24 Horas seria anacrônica. É que, embora o seriado apostasse em reviravoltas na trama e na escalada do perigo, havia uma certa previsibilidade: quem parecia do mal se revelava bonzinho, quem tinha cara de anjo escondia um lado perverso; dramas familiares influenciavam questões de segurança nacional, e vice-versa; as baterias dos celulares nunca acabavam; e, principalmente, sabíamos que tudo estaria resolvido no intervalo de 24 horas, provavelmente pelas mãos de Jack Bauer.
No mundo do coronavírus, previsibilidade é um artigo raro. Os papéis são mais nebulosos – pelo menos na percepção popular, muito moldada pela polarização e pela desinformação: um mesmo ator político pode ser encarado como correto ou falso, dependendo do ponto de vista. É verdade que, aparentemente, assuntos de família (como suspeitas sobre filhos) continuam tendo peso em assuntos de governo (como a composição ministerial) e que, para quem cumpre o distanciamento social, os smartphones devem estar sempre carregados. Mas um único homem seria incapaz de salvar o mundo. Afinal, o vírus não respeita fronteiras nem mira bandeiras, tampouco tem medo de tortura. E o relógio digital que, com seu sinistro e metálico som, assinala nossa tensão não tem hora marcada para parar.