Já elogiei aqui os nomes com os quais a Netflix rebatizou, no Brasil, duas de suas séries: o suspense The Stranger, algo genérico, virou Não Fale com Estranhos, seguindo a tradução nacional do livro escrito por Harlan Coben, que subverte o sentido do mantra com o qual mães e pais, geração após geração, tentam proteger os filhos. O documentário Tiger King, por sua vez, tornou-se A Máfia dos Tigres, estabelecendo, de cara, que será uma narrativa coletiva, cheia de tipos no mínimo suspeitos.
Dito isso, tenho ressalvas quanto ao subtítulo que o serviço de streaming tascou em After Life: Vocês Vão Ter que me Engolir.
Primeiro porque remete a um personagem e a um fato que nada têm a ver com a série criada e estrelada pelo comediante inglês Ricky Gervais – para os quarentões brasileiros como eu, a expressão ficou incrustada na figura do treinador Zagallo, que desabafou dessa forma ao conquistar, com a Seleção, o título da Copa América de 1997.
Segundo porque está fora de sintonia com o próprio seriado. Na temporada inicial, até caberia, dada a forma como o jornalista Tony lida com a perda da esposa, Lisa (Kerry Godliman), vítima de câncer: franqueza absoluta, comentários sarcásticos, raiva incontida e aversão ao convívio com as demais pessoas – e consigo mesmo. Mas o bordão contrabandeado não faz muito sentido na segunda leva de seis episódios com 20 e tantos minutos cada, em que o protagonista está mais dócil e agregador. E o adendo ainda faz o desfavor de nublar a delicadeza e o lirismo que coabitam com a amargura e o cinismo na cidadezinha de Tambury, na Inglaterra.
Se bem que, pensando agora, Vocês Vão Ter que me Engolir pode ser uma ironia em referência ao que se espera do próprio Ricky Gervais. Afinal, o Tony um pouco mais bonzinho do segundo ano de After Life chega na esteira do cáustico monólogo do comediante na cerimônia do Globo de Ouro, em janeiro. Ele fez piadas sobre pedofilia, sobre características físicas dos atores convidados ("Eu vi o Baby Yoda... Ah, não, espera, era só o Joe Pesci"), sobre racismo, sobre o telhado de vidro dos astros que se consideram politicamente engajados, mas que trabalham para empresas, na opinião do inglês, comparáveis ao Estado Islâmico.
— Você não está em posição nenhuma para ensinar o público sobre qualquer coisa. Você não sabe nada sobre o mundo real — sentenciou.
Gervais, 58 anos, traz esse humor agressivo estampado em seu cartão de visitas desde que surgiu para o mundo, como cocriador e protagonista da versão original de The Office (2001). Se o americano Michael Scott (Steve Carell) é ingênuo, bobo e provoca vergonha alheia, o inglês David Brent é desprezível, odiável e assusta.
Mas o comediante já havia diluído o veneno em seu seriado anterior, Derek (2012-2014), também disponível na Netflix. Ele interpreta um cinquentão com traços de atraso intelectual ou autismo que trabalha em um lar para idosos. O cotidiano é retratado em um estilo semelhante ao de The Office, o do falso documentário.
Serviu como uma espécie de ensaio para After Life, que também tem como um dos principais cenários um asilo – onde vive o pai de Tony, Ray (David Bradley, o temido Walder Frey de Game of Thrones), com Alzheimer – e que também trafega entre o riso e o choro, entre o belo e o incômodo ao abordar temas como depressão, finitude, solidão, compaixão, preconceito e amor (o romântico e o próprio). Em um diálogo emblemático do episódio de abertura da segunda temporada de After Life, Tony e o fotógrafo da Gazeta de Tambury, Lenny, vão entrevistar uma centenária que acabara de ser felicitada pela rainha Elizabeth.
Como a senhora se sentiu ao receber o telegrama real?
— Como eu me sinto todos os dias. Péssima. Com dor. Desejando não ter sobrevivido à noite.
Que conselho daria a alguém para ter uma vida longa?
— Não tenha. Esta merda é horrível. Dói só de estar viva. O meu mês é assim: na primeira semana, diarreia. Nas três semanas seguintes? Não consigo fazer cocô!
Mas a senhora deve ter visto muita coisa. São cem anos!
— Eu nasci em Tambury. Vou morrer em Tambury. Em breve, espero. Não vi porra nenhuma! É como se eu tivesse sido uma árvore.
Esse desbocado desencanto é sucedido pelo igualmente desbocado hedonismo do psiquiatra (Paul Kaye, outro ex-Game of Thrones) com quem se trata o diretor de redação, sofrendo a separação da esposa.
— Você deve ignorar as preocupações e começar a fazer coisas — "aconselha" o médico, sugerindo que o paciente se junte a ele em noitadas na companhia de dois amigos (um deles apelidado de Pedó, de pedófilo, depois de ter transado com uma anã), todos à procura de... bem, insira aqui as formas mais chulas de chamar o órgão sexual feminino.
Cenas como essa realçam a deliciosa imprevisibilidade de After Life. Porque, logo depois, podemos estar diante de um momento de inesperado afeto por parte do desmemoriado Ray com o filho, ou de um dos vídeos com um toque de autoajuda que Lisa deixou gravado para o marido, ou de um diálogo edificante entre Tony e Anne (Penelope Wilton), ambos sentados defronte aos túmulos de seus respectivos cônjuges. É uma montanha-russa emocional, ainda que em baixa velocidade e com alto grau de reflexão – a experiência, inclusive pela duração e por alguns temas visitados, é semelhante à proporcionada por outra baita comédia dramática britânica, Fleabag.
Esse Ricky Gervais meio fofo e um tanto autopiedoso desagradou uma parcela de fãs do humorista inglês. Mas sua faceta mais mordaz, provocadora e desenfreada também pode ser admirada na Netflix. No stand-up Humanidade (2018), que foi seu primeiro show em um intervalo de sete anos, ele satiriza a transformação de Bruce Jenner, ex-atleta olímpico e ex-padrasto de Kim Kardashian, em Caitlyn Jenner; defende o ateísmo e ataca os cristãos fundamentalistas; reencena uma descoberta chocante sobre seus testículos; insere assuntos tabu, como o Holocausto e o estupro, em suas piadas; e "chuta" um bebê morto ao contar por que resolveu não ter filhos.
Tudo é feito com fluidez – Gervais demonstra um domínio perfeito do tempo e do espaço, sabendo a hora e onde resgatar um elemento ou personagem de um chiste anterior – e propósito: quase que didaticamente, o comediante relembra que o humor é um antídoto contra o peso da vida ("Todos vamos morrer, então, vamos dar risada"), explica que há diferenças cruciais entre o tema e o alvo de uma piada e critica a enorme capacidade das pessoas de se sentirem ofendidas:
— Uma piada sobre uma coisa ruim não é tão ruim quanto a coisa, nem é necessariamente a favor dessa coisa. Pode ser contra. Depende da piada. É preciso entender o contexto. Rir de uma coisa ruim não o torna uma pessoa ruim.
Engula essa.