Durante o penúltimo episódio de A Máfia dos Tigres, cheguei a pensar em não assistir ao epílogo. Não porque eu tivesse, subitamente, perdido o interesse em saber como a história acaba. Mas porque não queria que ela acabasse.
Esse é o grau da fissura provocada pela série documental, uma das mais recentes sensações da Netflix – nos Estados Unidos, superou a audiência do seriado Stranger Things.
A obra nasceu para compreender outro fenômeno de popularidade. O objetivo dos diretores Eric Goode e Rebecca Chaiklin era retratar o cotidiano dos colecionadores de grandes felinos em seu país, onde, estima-se há de 5 mil a 10 mil tigres – enquanto na natureza não restam mais de 4 mil. Mas, tal qual um filhote de tigre, o bicho cresceu e precisou de espaço: se o hábitat desses mamíferos pode alcançar centenas de quilômetros, o documentário virou uma série de sete episódios (cada um com 40 a 50 minutos de duração). Tal qual um filhote de tigre, o bicho cresceu e se tornou algo sorrateiro e perigoso: envolve questões como contratação de um matador de aluguel e o misterioso desaparecimento de um milionário, maus-tratos a animais e mutilações de humanos; poligamia e uso de drogas; trabalho em condições análogas à da escravidão e formação de uma espécie de culto; e toda sorte de vingança e traição.
Ou seja, A Máfia dos Tigres mistura pelo menos três enormes apelos para o público: felinos (e uma série de depoimentos ajuda a explicar nosso fascínio por eles), a bizarrice como porta de entrada para a fama e trama policial (na mesma linha, também recomendo Don't F**k with Cats, documentário em três capítulos, igualmente disponíveis na Netflix, que acompanha uma caçada na internet a um jovem que publicava vídeos mostrando o assassinato de gatinhos). De quebra, convida a um mergulho na América profunda, os bolsões de brancos empobrecidos (white trash), tão em voga desde a eleição de Donald Trump para a Casa Branca.
O título original, Tiger King, refere-se ao personagem central, dono de um zoológico no Estado do Oklahoma. Mas o nome com que foi lançada no Brasil revela-se mais adequado. A Máfia dos Tigres estabelece, de cara, que será uma narrativa coletiva, cheia de tipos no mínimo suspeitos. Vejamos alguns deles:
Joe Exotic – Batizado como Joseph Schreibvogel, a certa altura será chamado de Maldonado-Passage, porque adotou o sobrenome de seus dois jovens maridos. É um caso incomum de homossexual armamentista: um de seus passatempos, registrado em seus programas para o YouTube, era atirar em ou explodir bonecas que representassem sua nêmeses, Carole Baskin – será que ele extrapolou nas ameaças? Ególatra, Joe também fazia clipes de música country e, pasme, se candidatou a presidente dos EUA em 2016 (dois anos depois, tentou ser governador do Oklahoma).
Carole Baskin – Herdeira de uma fortuna, é a administradora do Big Cat Rescue, um santuário para animais na Flórida. É Joe quem levanta controvérsias tanto sobre o lugar quanto sobre a pessoa. São duas acusações: a de que Carole também explora comercialmente os felinos que ela diz defender e a de que não apenas mandou matar o marido para ficar com seu dinheiro, como transformou o corpo dele em comida de tigre. Loucura? Bem, não são poucos os entrevistados que acreditam em uma tese parecida.
Mahamayavi Bhagavan "Doc" Antle – Um americano que supostamente ganhou nome hindu porque a mãe era fã da filosofia oriental, é a versão bastante sofisticada de Joe, que o considera como um mentor. Seu refúgio de vida selvagem, na Carolina do Sul, abriga ligres, o gigantesco e abominável resultado do cruzamento de leões e tigres, um híbrido que só existe em cativeiro – afinal, na natureza os hábitats das duas espécies são muito distantes e diferentes. Sua equipe é formada por mulheres, que, geralmente, não são somente empregadas – depoimentos dão conta de que Doc namorava pelo menos três ao mesmo tempo. Essas mulheres eram obrigadas a mudar seus nomes (tornavam-se Ranjnee, Moksha, China) e pressionadas a fazer implante de silicone nos seios. Viravam, elas próprias, "atrações" do zoológico.
Jeff Lowe – Imagine um cantor de hard rock, tipo Bret Michaels, da banda Poison, envelhecido. De calça jeans rasgada ou surrada, jaqueta de couro, bandana e boné, eis Jeff Lowe, o investidor "anjo" que aparece para ajudar Joe Exotic. As aspas são porque de santo ele não tem nada. Ninguém sabe bem de onde saiu o dinheiro dele – aliás, é de se duvidar que haja o dinheiro.
A cada episódio de A Máfia dos Tigres, surgem novos personagens intrigantes, novos dramas e novas revelações. Não vou dar spoilers, pois um dos segredos do documentário é sua habilidade para embaralhar as cartas e distribui-las cirurgicamente, controlando as doses de informação para que o público não consiga desgrudar da história (lembram de que falei sobre adição?). Mas trago uma reflexão sensata de Joshua Dial, coordenador da campanha política de Joe Exotic: o que começou como uma luta boa e nobre para parar de vender filhotes se transformou em uma batalha judicial que tratou apenas das pessoas, e não dos animais. Milhões de dólares foram gastos no processo, na investigação e em publicidade, lamenta Joshua:
— Perdemos completamente a noção do que realmente importa aqui: a conservação das espécies deste planeta.
Ainda bem que eu assisti ao último episódio.
E ainda bem que a Netflix já liberou no Brasil um episódio extra, O Rei Tigre e Eu, em que o ator e comediante Joel McHale conversa com alguns dos personagens para descobrir como estão suas vidas desde que a produção do documentário acabou. Esse, sim, eu consigo esperar. Um pouco.