Comecei a assistir a O Caso Gabriel Fernandez e fiquei na dúvida se continuava e se recomendaria esta série documental em seis excruciantes episódios. Como podem fazer tanto mal a uma criança? Como podem ver o mal infligido a uma criança e não intervirem?
Parte de mim queria parar, desligar a Netflix, correr para brincar com a Helena e a Aurora, abraçar as duas e dizer o quanto eu as amo.
Mas outra parte quis seguir até o fim, ver um pouco de justiça sendo feita no tribunal. Não só a Pearl Fernandez, a mãe, e Isauro Aguirre, seu namorado, que torturaram durante oito meses um dos filhos dela, o doce Gabriel Fernandez, até tirarem sua vida quando tinha oito anos, em 2013, em um subúrbio da Califórnia (Estados Unidos). Torci para que o castigo alcançasse também quem sabia e não fez nada – em um fato raríssimo, quatro assistentes sociais acabaram denunciados por negligência e/ou falsificação de documentos. Desejei a vingança, sim, uma espécie de catarse. Como se do choro e da raiva emergisse um eu mais amoroso, mais conectado com a família, mais disposto a fazer o bem.
Decidi, mesmo no contexto alarmante da pandemia de coronavírus, sofrer junto com os promotores, os policiais, os paramédicos – um deles, com 20 anos de carreira, disse que nunca tinha visto nada mais horripilante. E, agora que fui exposto ÀQUELA FOTO, no segundo episódio, agora que vi como Gabriel chegou ao hospital, entendo o que o principal promotor do caso, John Hatami, diz: é impossível absorver, é impossível esquecer.
Para nós, gaúchos, também é impossível não comparar com o assassinato de Bernardo Uglione Boldrini, 11 anos. A brutalidade não foi a mesma, mas Leandro Boldrini, o pai, e Graciele Ugulini, a madrasta, também torturaram, foram negligentes e submeteram Bernardo a constrangimentos. A árvore com homenagens a Gabriel, na vizinhança de onde morava, me remeteu aos cartazes e às flores depositados na cerca da casa de Bê. E, assim como no caso norte-americano, o menino de Três Passos pediu ajuda e poderia ter sido salvo se a rede de proteção tivesse atuado corretamente.
Em uma cena do documentário, acompanhamos a visita de uma assistente social à casa de uma mãe sobre a qual recaíam queixas de maus-tratos a um bebê. A inspeção é minuciosa: vai da avaliação do tipo de alimentos armazenados na geladeira à busca de sinais de agressão no corpo da criança. Se uma assistente social tivesse realmente feito seu trabalho no apartamento de Pearl e Isauro, teria percebido os incontáveis sinais de que algo muito ruim estava acontecendo ali.
Este é um dos alertas de O Caso Gabriel Fernandez: o ambiente fala, o corpo fala, o comportamento fala. Os episódios fazem refletir sobre como tratamos nossos filhos, obviamente, mas sobre toda uma cultura de não se meter na vida dos outros. Precisamos estar atentos, precisamos comunicar, precisamos procurar as autoridades competentes. E essas autoridades são provocadas a rever a abordagem ao casos de abuso infantil e violência doméstica. Uma das especialistas entrevistadas critica o que considera uma excessiva proteção da família em detrimento da proteção da criança. Diz que a ótica é dos adultos, quando deveria ser a dos pequenos. De que adianta manter os filhos com os pais se os primeiros são vítimas frequentes dos últimos?
A despeito de todo o sofrimento reconstituído na série dirigida Brian Knappenberger, eu recomendo que vocês a assistam. No mínimo, porque é um trabalho monumental: foram entrevistadas dezenas de personagens ligados direta ou indiretamente ao caso, desde coleguinhas de aula de Gabriel até dois dos assistentes sociais acusados, passando pelos parentes da vítima e por sua professora – uma das pessoas que tentaram salvar o menino depois que ele perguntou:
— É normal a sua mãe bater em você com um cinto? É normal sangrar?
O documentário ilustra como é difícil, para as crianças, enxergarem os pais como monstros. Poucos dias antes de sua morte, Gabriel, cheio de escoriações e queimaduras no rosto, com um olho roxo e dentes quebrados, havia preparado uma homenagem a Pearl pelo Dia das Mães. Uma das frases que escreveu era "Eu vou ser bom".
Gabriel era uma criança de oito anos que, até o fim, deve ter acreditado que apanhava por "culpa" sua.
Nessas horas, eu só posso sonhar que exista um céu e que Gabriel virou um anjinho, e que lá de cima sorri quando a enfermeira que abre a série documental celebra, com a família dela, o aniversario dele.
A vida de uma criança deveria ser assim, com bolo, parabéns, brincadeira e amor. Suas fotos deveriam revelar isso, e não o que descobrimos em O Caso Gabriel Fernandez.