Ainda não pude assistir a todos os indicados ao Globo de Ouro, mas me arrisco a dar palpites e revelar minha torcida em um dos termômetros para o Oscar.
É sempre bom lembrar que esse troféu, a ser entregue neste domingo (28), é concedido pela Associação de Imprensa Estrangeira em Hollywood, que não tem direito a votos na premiação organizada pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Mas o Globo de Ouro gera, no mínimo, o burburinho que pode levar um filme ou um artista a disputar o Oscar – a lista de candidatos será divulgada em 15 de março, e a cerimônia está marcada para 25 de abril.
Como já deu para perceber, vou me ater às categorias de cinema, que acompanho mais de perto. E por cinema, na era do coronavírus, que forçou o fechamento de salas e o adiamento de estreias, podemos entender streaming. A produtora com mais indicações na 78ª edição do Globo de Ouro é a Netflix: 22. Em segundo lugar, estão obras lançadas por outra plataforma, Amazon Prime Video, com sete.
Vamos lá?
Melhor filme – drama
Nomadland, que narra com sensibilidade o cotidiano de uma mulher que, após o colapso econômico de uma cidade industrial nos EUA, precisa morar dentro de uma van, desponta como favorito tanto por causa do tema absolutamente contemporâneo, o do impacto da recessão na vida das pessoas comuns (há ecos de Você Não Estava Aqui), quanto por causa das premiações prévias. Previsto para estrear no Brasil em 18 de março, ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, o troféu Gotham (para produções com orçamento de até US$ 35 milhões), ficou na lista dos 10 melhores filmes do ano pelo American Film Institut e pelo National Board of Review e também concorre ao Independent Spirit Awards.
Mas não dá para esquecer que Mank (em cartaz na Netflix) é o campeão de indicações – são seis – e trata de um assunto que costuma encantar os críticos: os bastidores de Hollywood, especificamente, a dos anos 1930 e 1940, contando a história por trás do clássico Cidadão Kane (1941). Também não dá para dar como derrotado Os 7 de Chicago (Netflix), que reconstitui um célebre julgamento do passado para refletir sobre o presente político norte-americano e disputa um total de cinco categorias. E há ainda a contundência e o humor ácido de Bela Vingança (18 de março no Brasil), que aborda a cultura do estupro.
Mesmo sem ter visto Meu Pai (estreia somente em abril por aqui), acho que ocupa indevidamente um posto que deveria ter sido de um dos grandes filmes sobre racismo da temporada, A Voz Suprema do Blues e Uma Noite em Miami. Bem, se eu votasse, ficaria dividido entre Nomadland e Bela Vingança, com leve inclinação para este último por conseguir ser, ao mesmo tempo, sarcasticamente fantasioso e cruelmente realista.
Melhor filme – musical ou comédia
Esta é uma categoria anacrônica do Globo de Ouro. A distinção poderia fazer sentido em priscas eras de Hollywood, mas hoje não condiz com a fluidez de gêneros da produção cinematográfica (vide Parasita, por exemplo). E, em vez de valorizar as comédias e musicais, o efeito parece ser o oposto, já que boa parte da mídia acaba dando mais atenção aos dramas. Isso quando a Associação de Imprensa Estrangeira não comete bizarrices, como enquadrar na categoria a ficção científica Perdido em Marte (2015), e o terror Corra! (2017) ou mesmo o violento Era uma Vez em Hollywood (2019).
Em 2021, não há excentricidades. Quer dizer, não em relação ao registro, mas talvez em relação à forma. Hamilton (disponível no Disney+), a filmagem do premiado e aplaudidíssimo espetáculo musical da Broadway, é cinema? Há quem diga que sim, outros, como eu, entendem que, a despeito da qualidade, é apenas teatro filmado. Para mim, estaria fora da briga, assim como o cansativo A Festa de Formatura (Netflix) e o controverso Music (inédito no Brasil), criticado por uma representação supostamente estereotipada do autismo – a diretora, a cantora Sia, chegou a pedir desculpas.
A briga ficaria entre Palm Springs (sem data de lançamento no Brasil) e Borat: Fita de Cinema Seguinte (Amazon Prime Video), dois queridinhos da crítica. No primeiro, um homem e uma mulher se conhecem durante um casamento em Palm Springs, onde estão condenados a reviver o mesmo dia, à la Feitiço do Tempo (1993). No segundo, o fictício repórter do Cazaquistão, após 14 anos, volta aos Estados Unidos, agora tendo Donald Trump como alvo – sobra até para Bolsonaro. Ambas as comédias divertem e procuram ser ousadas, embora algumas de suas piadas e de seus truques possam ser antevistos. Borat seria o meu eleito.
Melhor direção
Difícil decidir, porque todos trabalharam muito bem, imprimindo estilo próprio e/ou visão de cinema e de mundo. Digamos que torço para Regina King, para compensar a ausência de Uma Noite em Miami da categoria de melhor filme – drama e para premiar uma diretora. Mas na verdade as outras duas cineastas na briga merecem mais: a inglesa estreante Emerald Fennell, que assombra no fulgurante Bela Vingança, e a chinesa Chloé Zhao, que investe na sobriedade em Nomadland. David Fincher (Mank) e Aaron Sorkin (Os 7 de Chicago) completam a lista.
Melhor atriz – drama
Páreo duríssimo. As quatro indicadas que já vi (só falta Andra Day, de Estados Unidos vs. Billie Holiday) arrasam. Em A Voz Suprema do Blues, Viola Davis (seis indicações, com uma vitória, por Um Limite Entre Nós) nos brinda com seu vozeirão, mas também com silenciosos olhares que transmitem ora desejo, ora raiva, ora arrogância, ora cansaço. Em Pieces of a Woman (Netflix), Vanessa Kirby tem o desempenho de sua vida como uma mulher que precisa lidar com o luto materno ao perder o bebê logo após o parto.
Em Nomadland, Frances McDormand (sete indicações e uma vitória, por Três Anúncios para um Crime) consegue equilibrar o orgulho e a fragilidade da protagonista sem escorregar para o exagero. Em Bela Vingança, Carey Mulligan encarna com gana o lado justiceira de sua personagem, mas também é forte quando ela precisa ser vulnerável. Fico feliz com qualquer escolha, mas pendo para Viola e Carey.
Melhor ator – drama
Com todo respeito aos veteranos britânicos Anthony Hopkins (Meu Pai) e Gary Oldman (Mank) e ao francês de origem argelina Tahar Rahim (The Mauritanian, sem previsão de estreia no Brasil), aqui há um duelo entre Riz Ahmed, a alma de O Som do Silêncio (Amazon Prime Video), e Chadwick Boseman, o coração de A Voz Suprema do Blues.
Um duelo musical: Ahmed interpreta um baterista de punk metal que fica surdo, Boseman faz um trompetista que deseja alcançar sucesso junto aos brancos. Será que a possibilidade de fazer uma homenagem póstuma ao eterno Pantera Negra, morto em agosto, vai pesar na balança? Ou o ator inglês de família paquistanesa vai acumular mais um troféu na coleção que já inclui o Gotham e o National Board of Review?
Melhor atriz – musical ou comédia
É a categoria em que me sinto menos à vontade para opinar, pois ainda não assisti às atuações de Michelle Pfeiffer (French Exit, inédito no Brasil), Kate Hudson (Music) e Anya Taylor-Joy (Emma, disponível no Telecine). Mas entre Maria Bakalova (Borat: Fita de Cinema Seguinte) e Rosamund Pike (Eu me Importo, recém lançado pela Netflix), sem dúvida nenhuma escolheria a primeira. Como a filha adolescente do fictício repórter, a búlgara Bakalova foi uma das revelações de 2020. Emprestou capacidade de chocar e um insuspeitado humanismo a Tutar, que, aos 15 anos, "é a mais velha solteira do Cazaquistão".
Melhor ator – musical ou comédia
Se eu mandasse no Globo de Ouro, Lin-Manuel Miranda (Hamilton) não seria elegível e puxaria as orelhas dos membros da associação pela indicação de James Corden (A Festa de Formatura). Sem ter conferido Dev Patel no inédito The Personal History of David Copperfield, acho que Andy Samberg (da série Brooklyn Nine-Nine), totalmente à vontade em Palm Springs, tem leve vantagem sobre Sacha Baron Cohen (Borat: Fita de Cinema Seguinte), que já havia vencido a premiação pelo mesmo papel em 2007.
Atriz coadjuvante
Há um curioso conflito de gerações, uma verdadeira escadinha. Glenn Close (Era Uma Vez um Sonho, na Netflix) tem 73 anos; Jodie Foster (The Mauritanian), 58; Olivia Colman (Meu Pai), 47; Amanda Seyfried (Mank), 35; e Helena Zengel (Relatos do Mundo, na Netflix), 12. Das três atuações que vi, Glenn Close deu o azar de se destacar em um filme ruim. Como ela já tem dois Globos de Ouro, suspeito que vão premiar Amanda Seyfried ou Helena Zengel, para dar uma cara jovem a uma festa meio antiquada.
Ator coadjuvante
Disputa complicadíssima porque temos três queridinhos da crítica – Bill Murray (On the Rocks, no Apple TV), dono de um Globo de Ouro e de outras cinco indicações, Sacha Baron Cohen (Os 7 de Chicago), um troféu e mais três indicações, e Jared Leto (Os Pequenos Vestígios, que chega em 11 de março), um troféu e outra indicação – e dois talentos negros em ascensão: Daniel Kaluuya, 31 anos, que faz um dos líderes dos Panteras Negras, Fred Hampton, em Judas e o Messias Negro (em cartaz nos cinemas brasileiros a partir desta quinta, 25) e concorreu por Corra! (2017), e Leslie Odom Jr, um egresso de Hamilton que brilha como o cantor, compositor e empresário Sam Cooke em Uma Noite em Miami – ele inclusive briga pelo prêmio de melhor canção original, Speak Now, composta com Sam Ashworth. Tem meu voto.
Roteiro
Bela Vingança e Os 7 de Chicago são os únicos indicados ao Globo de Ouro que também aparecem entre os 10 concorrentes da premiação do Sindicato dos Roteiristas, ambos na categoria de melhor script original, ambos assinados por seus diretores (respectivamente, Emerald Fennell e Aaron Sorkin). Pois fico dividido entre os dois (os outros três candidatos são Nomadland, Mank e Meu Pai).
O primeiro consegue misturar comédia, drama e suspense na mesma medida em que critica as estruturas machistas da sociedade e o efeito devastador sobre suas vítimas. O segundo vai tecendo a trama do julgamento enquanto promove duelos verbais e monólogos antológicos sobre o papel do Estado e o papel do cidadão, sobre patriotismo e liberdade de expressão, sobre a lei e a justiça, sobre a ética pessoal e os interesses coletivos.
Filme em língua estrangeira
O favoritismo e a minha torcida estão com o dinamarquês Druk: Mais uma Rodada (Another Round no título em inglês), drama sobre quatro professores do Ensino Médio que resolvem testar uma teoria segundo a qual poderão ser mais felizes e bem-sucedidos se estiverem sempre alcoolizados.
Mads Mikkelsen, ator de A Caça (2012) e protagonista do seriado Hannibal (2013-2015), tem um desempenho extraordinário como um pai de família em crise de meia-idade. Sua cena final é uma das mais inesquecíveis da temporada. A direção é de Thomas Vinterberg, o mesmo de Festa de Família (1998) e A Caça. Druk ganhou quatro prêmios da Academia Europeia de Cinema: melhor filme, diretor, ator e roteiro. Estreia no Brasil em 25 de março.
Quem pode surpreender na categoria é Minari, um filme que na verdade é norte-americano, mas falado em coreano na maior parte do tempo. Dirigido por Lee Isaac Chung e vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Sundance, conta a saga de uma família da Coreia do Sul que se muda para uma fazenda no Arkansas em busca do sonho americano. No elenco, Steven Yeun, o Glenn do seriado The Walking Dead. Deve entrar em cartaz em março no Brasil. Completam a lista o italiano Rosa e Momo (Netflix), com Sophia Loren, e os inéditos La Llorona, da Guatemala, e Nós Duas, da França.
Animação
Aqui, o terreno parece tranquilo para Soul (disponível no Disney+), ainda mais no contexto da pandemia, que reforça uma das mensagens da animação da Pixar, a de dar valor às pequenas coisas da vida. Os rivais são Dois Irmãos (Amazon Prime Video), também da Pixar, A Caminho da Lua (Netflix), Os Croods 2 e Wolfwalkers (que pode ser a zebra).
Trilha sonora original
Tirando a excessivamente melosa música de Alexandre Desplat em O Céu da Meia-Noite, a briga é interessante na categoria de trilha sonora original (não de canção, não me sinto apto a julgar). Atticus Ross e Trent Reznor usaram apenas instrumentos de época em Mank (a dupla também concorre, em parceria com Jon Batiste, por Soul). James Newton Howard é fundamental para estabelecer o clima ora melancólico, ora tenso de Relatos do Mundo. Mas meu voto iria para Ludwig Göransson, que fez de Tenet um filme muito mais envolvente do que realmente é.