Retrato de uma Jovem em Chamas. Sempre que me pedem para indicar um filme recente pelo qual me apaixonei, seja no Timeline da Rádio Gaúcha, seja na conversa com um amigo, vem à boca ou à mão essa obra de arte em cartaz no Telecine, na Apple TV, no Now, no Google Play e no YouTube.
Cada plano de Retrato de uma Jovem em Chamas (Portrait de une Jeune Fille en Feu, 2019) é como um quadro que revela o talento do artista para a composição da cena, a expressividade dos personagens, o contraste das cores (ou dos significados), a indução de um sentimento. Essa aproximação estética com a pintura não torna o filme necessariamente estático, porém, é preciso reconhecer que, em seu início, o ritmo narrativo pode ser um obstáculo para o envolvimento do espectador. Mas também é preciso reconhecer que, com a aparente lentidão, a cineasta francesa Céline Sciamma espelha o próprio processo de pintar. Isso é sugerido nos créditos de abertura: uma tela em branco que aos poucos vai recebendo pinceladas, como a nos avisar, a nos lembrar, que um quadro – ou um romance entre duas pessoas – não nasce pronto; requer camadas e mais camadas de tintas e de emoções, até que nos conquiste por completo, nos hipnotize de tal forma que nos convertemos em dependentes de contemplá-lo.
Preterido pela França na corrida pelo Oscar de melhor filme internacional (o país selecionou Os Miseráveis, de Ladj Ly, inapelavelmente derrotado pelo furacão Parasita), Retrato de uma Jovem em Chamas concorreu ao Globo de Ouro, ao Bafta, da Academia Britânica, e ao Independent Spirit Awards, nos Estados Unidos. No Festival de Cannes, ganhou o troféu de melhor roteiro e a Palma Queer, destinada a produções LGBT+, triunfo repetido no Prêmio Felix, do Festival do Rio.
A diversidade sexual e as questões de gênero são temas caros a Céline Sciamma, 42 anos. Em seu primeiro longa-metragem, Lírios d'Água (2007), ela retratou o nascer da sexualidade de três garotas de 15 anos companheiras de nado sincronizado. Em Tomboy (2011), uma menina de 10 anos se faz passar por menino para tentar se socializar com as crianças da vizinhança, mas acaba em crise de identidade ao se afeiçoar por uma amiga. Garotas (2014) foca o cotidiano das adolescentes negras dos subúrbios franceses, todas lidando não só com o racismo e a pobreza, mas também com a explosiva puberdade.
Retrato de uma Jovem em Chamas é o primeiro filme de época de Céline. Com direção de fotografia de Claire Mathon (a mesma de Atlantique), a história se passa em 1770, em uma ilha da Bretanha, no noroeste francês. Marianne (Noémie Merlant) é uma jovem pintora contratada para fazer o retrato de Héloïse (Adéle Haenel), uma moça que acaba de ser retirada de um convento e está prometida pela mãe (Valeria Golino) a um cavalheiro de Milão, na Itália – e isso é tudo o que a noiva sabe do futuro marido. Ela igualmente desconhece o motivo da presença de Marianne, que é apresentada como uma dama de companhia – terá de fazer seu trabalho em segredo, a partir da observação durante os passeios pela praia deserta.
Não é segredo que a artista e a modelo vão se apaixonar uma pela outra, mas esse romance é nutrido em silêncio. Aliás, o filme sequer tem trilha sonora – o que se escuta, pontualmente, é o crepitar de uma lareira ou o estourar das ondas, o fogo como símbolo do desejo que cresce, o mar bravio como símbolo da perturbação emocional das personagens. Céline Sciamma trabalha inicialmente com o não dito, com a metáfora, com a alusão. Reflete, no século 18, o drama ainda contemporâneo das mulheres que não podem dizer o que querem. Há um diálogo incisivo em relação à sociedade patriarcal e avessa ao progresso nos costumes. Falando sobre sua experiência no convento, Héloïse enumera algumas vantagens, como a biblioteca e a música (a presença da cultura). E arremata:
— Tinha como viver em igualdade.
Esse discurso que rechaça a passividade nos relacionamentos – a da mulher como presa do homem 0 é evocado quando Héloïse, já ciente da missão de Marianne e enfim posando para ela, ouve a pintora dizer que odiaria estar no lugar da musa, um objeto em observação. Héloïse retruca:
— Estamos no mesmo lugar. Se você olha para mim, para quem estou olhando?
O roteiro primoroso de Retrato de uma Jovem em Chamas é marcado por reverberações. São como as camadas de tinta que dão volume e vigor a um quadro. A certa altura, Héloïse narra a Marianne e a uma criada da casa, Sophie, sobre o mito de Orfeu e Eurídice. A lenda grega não apenas é discutida em cena, como a sua interpretação por Héloïse ecoará mais à frente.
Também repercutem ao longo da trama os dois únicos momentos musicais. No primeiro, Marianne toca ao cravo um trecho do Verão d'As Quatro Estações, do compositor italiano Antonio Vivaldi (1678-1741). Descrevendo o vibrante presto, a artista parece traduzir o sentimento entre as duas. Mais tarde, em uma cena extasiante, a câmera focada exclusivamente no rosto de Héloïse, sentada no camarote para assistir à apresentação dessa mesma obra por uma orquestra de câmara, o ataque de violinos do presto despertará uma lembrança sufocada.
O outro momento musical é o mais mágico e transcendental do filme, a única concessão de Céline seu rigor naturalista. A convite de Sophie, em uma noite Héloïse e Marianne vão a uma celebração feminina em torno de uma fogueira. Já habituados à ausência de uma trilha sonora, primeiramente estranhamos o som, ainda mais que se assemelha ao que um sintetizador produziria, não um instrumento de época. E então ouvimos um cântico em que as vozes começam a se sobrepor, e logo as mulheres em cena começam a entoá-lo e a imitar a batida de palmas sincopada que o acompanha – é praticamente um transe espiritual, uma combinação sublime de imagem e som.
Escrita por Para One, produtor de música eletrônica que trabalhara com a diretora em Lírios d'Água e Tomboy, e por Arthur Simonini, a canção La Jeune Fille en Feu foi inspirada no Réquiem e na Lux Aeterna de Gyorgy Ligéti, usados por Stanley Kubrick em 2001, uma Odisseia no Espaço (1968) — ao comparar as peças musicais, percebe-se logo a semelhança na criação de uma atmosfera de mistério e misticismo. Seus versos são em latim. Um deles, repetido em looping pelo coro, cada grupo de vozes em um tempo distinto, é Non possunt fugere, que poderia ser traduzido como "Elas não podem escapar". Vale tanto para a inevitabilidade da paixão entre Marianne e Héloise quanto para a inevitabilidade do destino dessa paixão em um mundo orquestrado pelos homens. São dois sentidos paradoxais, por certo, mas o filme não tem pudor de retratar situações assim – como a da personagem que segura a mão de um bebê enquanto se submete a um aborto, uma cena tão linda quanto triste. O cântico termina com Nos resurgemus, "Nos reergueremos", uma coda esperançosa para um filme sobre mulheres que tentam pintar uma paisagem – nem que seja na memória – onde podem transcender os limites impostos.