Por Eveton Cardoso, jornalista e crítico musical
O último fim de semana, sem dúvida, foi pra ficar na memória de Porto Alegre e de sua cena operística: a encenação de Orfeu e Eurídice apresentada pela Ospa mostra que a orquestra atinge um novo momento no que se refere a montagens do gênero. Nos últimos três anos, o conjunto havia encenado obras cômicas – Don Pasquale, Don Giovanni e a opereta A Viúva Alegre. Havia me restado, depois dessa sequência, uma questão: como se sairia a Ospa numa montagem dramática? Não só se saiu muito bem com a peça de autoria do alemão Christoph Willibald Gluck (1714-1787) como surpreendeu, e muito, no que mostrou no Theatro São Pedro em duas récitas com casa cheia.
A direção cênica e coreográfica de William Pereira se mostrou eficaz. No começo, um cenário pleno de referências musicais para o momento em que Orfeu – um exímio músico – lamenta a morte de sua amada. O predomínio do branco na cena deixa clara essa referência, já que depois Eurídice aparecerá sempre vestida dessa cor e será a única personagem a usá-la. Chama atenção a ousadia do figurino proposto por Antonio Rabàdan para bailarinos e coro: homens e mulheres vestem fraques cuja casaca se alonga e se transforma numa saia que chega ao chão. Aliás, o figurino vai ser o grande destaque também da segunda – e magistral – cena.
No momento em que o protagonista pleiteia a entrada no mundo dos mortos para resgatar sua amada, o piano branco de Orfeu está pendurado no centro de um palco predominantemente negro. O elenco de bailarinos e o coro, que agora interpretam os seres que habitam a entrada desse lugar, as Fúrias, usa uma espécie de longo vestido negro em camadas bufantes com efeito semelhante ao balonê. Trabalham freneticamente como se fossem uma tropa de burocratas passando de mão em mão folhas com partituras. O ruído dos papéis oferece um interessante complemento à música e dá o tom frenético do momento.
Grandiosidade
As atuações das três protagonistas – Denise de Freitas, Carla Cottini e Raquel Fortes – foram impecáveis. No caso desta última, um destaque especial: ela participou de duas montagens levadas a palco pelo projeto de óperas da UFRGS, o que demonstra o quanto a organização de um sistema de produção operística que inclua espaços de formação e experimentação é capaz de alavancar todo o circuito que se origina daí. Nesse sentido, resta a esperança de que a universidade volte a ter um projeto do gênero.
A orquestra, sob regência de Evandro Matté, fez uma ótima interpretação também. Mas são dois outros grandes coletivos que acabam por tomar muito do protagonismo da noite: as cenas ganharam em força e grandiosidade com as competentes interpretações do Coro Sinfônico da Ospa, sob regência de Manfredo Schmiedt, e da Companhia Municipal de Dança de Porto Alegre, com coreografias de Alexandre Rittmann e Paula Amazonas.
Não resta, então, a menor dúvida de que esta montagem está inscrita na antologia dos grandes momentos da orquestra e também do palco do São Pedro. Depois de um resultado como este, talvez seja o momento de lançar mais uma provocação: por que não montar mais de um título por ano? É claro que tenho ciência das implicações – e das limitações –, mas isso seria apenas mais um desafio para a Ospa, hoje uma das principais articuladoras da cena artística sul-rio-grandense. E, se essas iniciativas envolverem mais parcerias com outras instâncias de produção musical e cênica, não há dúvidas de que a todos nos fará muito bem. Ainda mais em tempos em que a cultura tem estado tão desprestigiada e desidratada de recursos financeiros.