E aí? Aproveitaram o primeiro fim de semana do Fantaspoa? Eu assisti a nove filmes entre sexta-feira e domingo — somando o que pude conferir previamente, já vi 27 dos 55 longas-metragens que estão em competição no 17º Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre (divididos entre Mostra Ibero-Americana, Mostra Internacional e Animações).
Ainda há pelo menos nove títulos que me atraem (o brasileiro Menáge, o argentino Noturna: A Noite do Velho Homem, o norte-americano Este Jogo se Chama Assassinato, o dinamarquês Vítima do Amor, o polonês Mate-o e Deixe Esta Cidade, o tcheco Sonhos Coloridos, o cazaque Querida, Você Não Vai Acreditar, o japonês Dois Minutos Além do Infinito e o indiano Rabo de Cavalo), mas já me sinto à vontade para elaborar uma lista com 13 dos melhores desta edição. Modéstia à parte, convido vocês a usarem esta relação como um guia para os próximos dias e lembro que o Fantaspoa termina no próximo domingo (18) e que mais de 70% dos filmes podem jamais ser lançados comercialmente no Brasil.
Ou seja, resta apenas uma semana para assistir, de graça e em casa (basta fazer um cadastro na plataforma de streaming Wurlak), a filmes de terror, ficção científica, fantasia, suspense ou comédia que permitem uma volta ao mundo (29 países, de todos os continentes, estão representados). A viagem também é metafórica: quase sempre, as obras fogem do rame-rame hollywoodiano, estimulando o espectador a descobrir caminhos e significados, fazendo-nos abrir portas sem saber bem aonde vamos parar, arrastando-nos por terrenos às vezes sinistros, em outras oníricos.
Aqui estão, em ordem puramente alfabética, os imperdíveis do Fantaspoa 2021 (para saber mais sobre alguns títulos, clique nos links). Se puder, não deixe para o último fim de semana, pois os filmes saem de cartaz após atingirem a marca de 3 mil visualizações.
Black Medusa (Tunísia, 2020)
Enquanto O Homem que Vendeu sua Pele, indicado ao Oscar de melhor filme internacional, não estreia no Brasil, o Fantaspoa oferece uma oportunidade de conhecermos o cinema contemporâneo da Tunísia. O curioso é que há mais duas aproximações possíveis com concorrentes à premiação da Academia de Hollywood: Black Medusa foi filmado pela dupla Youssef Chebbi e ismaël (que assina assim mesmo, com a inicial minúscula) com um preto e branco algo fantasmagórico, como Mank, e conta uma história de revanche feminina contra a violência sexual cometida pelos homens, como Bela Vingança.
Bloodshot Heart (Austrália, 2020)
Bloodshot Heart é o que poderia se chamar de um filme "austaliano", uma mistura de Austrália com Itália. A começar por seu diretor e roteirista, Parish Malfitano, que, em seu longa-metragem de estreia, tem como protagonista outro descendente de italianos, o instrutor de autoescola Hans (encarnado por Richard James Allen). Aos 44 anos, Hans ainda mora com uma típica mamma, Catherine (Dina Panozzo), tão protetora quanto intrusiva. A relação edípica dos dois é abalada quando aparece Matilda (Emily David), e a partir daí o filme começa a evocar elementos do giallo, gênero do cinema italiano que registrou seu auge na década de 1970, como a textura das imagens, o trauma do protagonista, a obsessão erótica, a exposição de sangue, a fantasia que altera a percepção da realidade e as sequências de alucinação. Uma delas é experienciada por Hans dentro de um cinema, onde entrou para assistir a um fictício filme giallo, Il Sangue di Due Donne (O Sangue de Duas Mulheres).
A Cabeleireira (EUA, 2020)
A cena de abertura do filme dirigido e coescrito por Jill Gevarzigian mostra a perturbada personagem com quem estamos lidando: de dia, Claire corta cabelos; à noite, cabeças. A Cabeleireira é uma afinada parceria entre a cineasta e a atriz Najarra Towsend. As duas conseguem andar com elegância numa delicada e arriscada corda bamba: não endossam a assassina serial, não justificam seus atos, mas permitem que Claire seja uma personagem com mais camadas. E, com toda calma do mundo, mas jamais cansando o espectador, Gevarzigian conduz a trama para um final arrasador. Daqueles que ficam, grudam na cabeça.
Dancing Mary (Japão, 2019)
A sinopse não daria conta de todos os temas e gêneros pelos quais Dancing Mary rodopia em 90 minutos de duração. Dirigido pelo japonês SABU, realizador do premiado Miss Zombie (2013), o filme alterna momentos de melodrama romântico com outros de ação à la samurai, momentos de comédia com outros de terror. Por meio de seus fantasmas, o cineasta discute a necessidade de termos um propósito, de não deixarmos assuntos pendentes, de buscarmos o equilíbrio entre a emoção e o dever e de nos conectarmos emocionalmente para enxergar do que a vida realmente é feita.
A Dark, Dark Man (Cazaquistão, 2019)
Se você acha que as comédias do Borat distorcem demais a realidade do Cazaquistão, vale a pena conferir este filme policial produzido no próprio país da Ásia Central, com direção de Adilkhan Yerzhanov. A placidez das paisagens ao fundo e o ritmo contemplativo da trama contrastam com personagens corruptos e violentos — como o próprio protagonista de A Dark, Dark Man, um detetive que deveria só tratar da papelada em um caso de estupro e assassinato de um menino, mas que acaba (por resquício ético ou interesse romântico, que seja) comprando briga com os mandachuvas da cidadezinha.
Get the Hell Out (Taiwan, 2020)
Dentro de sua proposta — a de fazer comédia com zumbis e com políticos —, o filme do taiwanês I-Fang Wang é uma delícia hipercalórica.
Bruce Hung encarna Wang, segurança do parlamento do país asiático que é alçado à condição de deputado após um incidente envolvendo a legisladora Hsiung (Megan Lai). Mas isso a gente só descobre depois de um início alucinante em que Wang e Hsiung precisam enfrentar uma horda de mortos e vivos em pleno plenário. Se você estiver no clima, pode dar boas risadas com a edição ágil, a ação exagerada, a pegada satírica (que inclui momentos de karaokê, game e até de merchandising), os apelidos dos personagens (como Nariz Sangrando, Parlamentar Gângster e Jardineiro Feroz) e algumas tiradas preciosas — como o que um sujeito diz a uma mulher solteirona que está com câncer: "Pelo menos você não tem família. Ninguém vai ficar triste!".
O Grande Salto (Irã, 2021)
Prova do prestígio adquirido ao longo de quase duas décadas, o Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre promove as primeiras exibições internacionais de novo filmes e a estreia mundial de três títulos estrangeiros: os norte-americanos Mister Limbo (leia mais logo abaixo) e Este Jogo se Chama Assassinato e o iraniano O Grande Salto, escrito e dirigido por Karim Lakzadeh. Merece vários adjetivos, alguns até antagônicos: lindo, triste (raras vezes um "Eu te amo" provocará tamanho choque), gracioso, filosófico, aventureiro, metafórico, político. Na trama, uma mulher recebe a notícia de que seu filho, dado como morto, está vivo. Então, ela parte em uma jornada pelo país, na companhia do cunhado e de três excêntricos artistas de circo.
História do Oculto (Argentina, 2020)
Ambientada em 1987 e filmada em preto e branco, a trama de Cristian Ponce envolve o espectador ao acompanhar os bastidores de um programa de TV fictício, o 60 Minutos Antes da Meia-Noite. O apresentador (vivido por Héctor Ostrofsky) vai receber três convidados: um senador, um sociólogo e um grande empresário, Adrián Marcato (Germán Baudino, ótimo no papel), que pode fazer uma revelação chocante: o presidente argentino estaria vinculado a uma seita satanista. Enquanto isso, a equipe de produção torce para que Marcato abandone o discurso evasivo ("Isso eu posso responder mais tarde") e enfrenta imprevistos, ameaças e o sobrenatural. Como de hábito no Fantaspoa, História do Oculto não se prende a um só gênero. O horror divide espaço com o comentário político (as instáveis democracias latino-americanas estão sempre sob o risco de um golpe, a imprensa investigativa e a oposição estão sempre cerceadas) e a sátira — há um impagável comercial que vende como paraíso turístico e "orgulho nacional" as Ilhas Malvinas, palco de um conflito armado, em 1982, entre a Argentina e o Reino Unido, que então voltou a ter soberania sobre o arquipélago (chamado pelos ingleses de Falklands).
Jumbo (Bélgica/França/Luxemburgo, 2020)
Esqueça Romeu e Julieta ou os relacionamentos de Ryan Gosling com uma boneca inflável (A Garota Ideal, 2007) e de Joaquin Phoenix com uma assistente virtual de computador (Ela, 2013). O mais proibido, insólito e bonito romance é de Jumbo, filme escrito e dirigido pela belga Zoé Wittock e estrelado pela francesa Noémie Merlant (a pintora de Retrato de uma Jovem em Chamas). A atriz interpreta Jeanne, uma garota bastante introvertida que mora com a mãe bastante extrovertida e que trabalha na manutenção de um parque de diversões. Lá, Jeanne vai se apaixonar por um recém-chegado — o Jumbo do título. Quem é ele? Descubra assistindo a esta história contada com muita sensibilidade, com cenas em que o excêntrico convive com o poético e uma mensagem tão fofinha quanto poderosa sobre a liberdade de amar.
Mister Limbo (EUA, 2021)
Estranhos um ao outro, dois homens (vividos por Hugo de Sousa e Vig Norris) acordam em um deserto sem saber como foram parar lá — sequer lembram seus próprios nomes. A partir daí, a dupla trava diálogos temperados por referências à cultura pop (como ao seriado The 4400, em que milhares de pessoas desaparecem sem explicação) e por discussões filosóficas ("Só porque uma coisa faz sentido não significa que esteja certa", diz um deles, "A igreja é um lugar aonde as pessoas vão porque não conseguem falar de suas culpas", afirma o outro). Uma pena que o título escolhido pelo diretor e roteirista Robert G. Putka entregue demais ao público sobre onde eles estão e o que está acontecendo. Mas, ainda assim, Mister Limbo é eficiente em achar o difícil equilíbrio entre revelar muito sobre seus mistérios e deixá-los demasiadamente no ar — Putka encontra o tempo certo para confirmar nossas intuições.
Nas Sombras (Turquia, 2020)
Ator que interpretou Haissan Haqqani em 13 episódios da série norte-americana Homeland (2014-2020) e que foi visto também como o Hakim de Aladdin (2019), Numan Acar é o protagonista desta distopia à la 1984, de George Orwell. Com roteiro e direção do turco Erdem Tepegoz, o filme se passa quase todo o tempo dentro de uma fábrica terrivelmente primitiva, onde os empregados são controlados por um sistema de vigilância onipresente. A certa altura, o personagem de Acar começa a ter dúvidas e questionar o status quo. Dos cenários aos figurinos, passando pela direção de fotografia e pelos efeitos sonoros, o trabalho técnico é impecável na criação de uma atmosfera de opressão e perigo.
A Risada (Canadá, 2020)
O filme do diretor e roteirista canadense Martin Laroche surpreende desde a abertura, pois é estranho uma obra chamada A Risada começar com uma cena de dor e de morte. Logo depois, vemos um número de dança. E, na sequência, acontece um massacre durante uma fictícia guerra civil no Canadá. O que emerge, literalmente, da cova é uma atuação fabulosa da atriz Léane Labrèche-Dor (preste atenção, por exemplo, no monólogo do mosquito) e uma história robusta e surreal sobre como encarar a vida.
A Sombra do Galo (Argentina, 2020)
Estreia do documentarista Nicolás Herzog na ficção, A Sombra do Galo se passa na província de Entre Ríos, no nordeste da Argentina. O ambiente algo rural, a trilha sonora, os cenários (que vão, literalmente, se descascando) e a fotografia (cada vez mais escurecida) conferem um clima de faroeste crepuscular à história do ex-policial Roman (Lautaro Delgado), que, após um período afastado por um motivo que de início desconhecemos, volta a sua cidadezinha por conta da morte de seu pai — também policial. Por lá, o protagonista começa a ter alucinações nas quais uma jovem, Angélica (Rita Pauls), parece incentivá-lo a desbaratar uma rede de prostituição e de tráfico de mulheres. Roman, logo se percebe, é um homem atormentado tanto pelo presente quanto pelo passado, tempos marcados pela violência cotidiana dos homens — traduzida de maneira lancinante nos belos versos cantados por uma artista de boate a quem ele assiste: "Traga-me seu amor / Traga-me morte / Boca que ama / Boca que morde".
A propósito desse tema, quem tiver estômago forte pode fazer uma sessão dupla com outro filme argentino do Fantaspoa, Carroña (2019), de Luciana Garraza e Eric Fleitas. É uma espécie de Mad Max podreira: em um mundo pós-apocalíptico e muito sádico, onde crianças jogam futebol com uma cabeça humana e onde as mulheres são somente pedaços de carne para serem consumidos e descartados pelos homens, pegamos carona no carro Torino de Tisha, uma assassina e traficante de órgãos. A trama é cheia de vísceras e vinganças, de estupros e mutilações. A direção de arte é digna de nota: quase dá para sentir o cheiro fétido daquele ambiente ameaçador.