Fuja (Run, 2020) chegou na sexta-feira (2) ao catálogo da Netflix impulsionado por quatro fatores: produção original do Hulu lançada em novembro, tornou-se o filme mais visto dessa plataforma de streaming dos Estados Unidos; tem como principal nome do elenco Sarah Paulson, atriz/musa das séries de terror American Horror Story e Ratched; é dirigido e coescrito pelo indiano-americano Aneesh Chaganty, premiado no Festival de Sundance pelo elogiado Buscando... (2018); e conta uma história fictícia sobre uma mãe possessiva que pode exigir bastante suspensão da descrença, mas que encontra cruéis similaridades com casos da vida real. Os chamarizes funcionaram: na manhã desta segunda-feira (5), o título era o segundo mais acessado na Netflix.
O filme começa em uma maternidade. A personagem de Sarah, Diane Sherman, deu à luz uma criança prematura. Muito prematura. Um letreiro informa a presença de várias doenças: arritmia, asma, diabetes, paralisia, hemocromatose (sobrecarga de ferro no organismo).
Passam-se 17 anos e agora acompanhamos a rotina da filha de Diane, Chloe (a estreante em longas-metragens Kiera Allen). A adolescente anda de cadeira de rodas (como a própria atriz, a propósito), toma uma porção de remédios, usa inalador e enfrenta um verdadeiro ritual no começo de cada dia. Educada em casa pela mãe e uma aparente craque em ciências, ela aguarda, ansiosamente, receber a carta de aprovação de uma das universidades para as quais se candidatou.
Mas Chloe nutre desconfiança sobre Diane. Suspeita que ela faz força para que a filha não deixe o ninho. Ah, se uma eventual carta da faculdade fosse a única coisa que a mãe lhe esconde...
Aneesh Chaganty é econômico (aliás, o filme tem menos de 90 minutos) e eficiente na criação de uma atmosfera de tensão e na encenação das tentativas de fuga — a violência gráfica, por exemplo, é mínima em comparação ao que poderíamos ver se a mesma história fosse contada por outros diretores de suspense ou terror. O diretor e corroteirista exagera é no excesso de detalhes que ajudam Chloe e o espectador a pintar todo o quadro. Algumas passagens, como a cena da farmácia, e alguns elementos, como um recorte de jornal, soam inverossímeis. E o epílogo parece mais um aceno ao sadismo que habita o interior de um considerável contingente de espectadores do gênero do que uma solução coerente com a índole das personagens.
Mas Fuja ancora-se em fatos. É sabido que mães de prematuros podem exercer uma superproteção ao longo de toda a vida, especialmente quanto a filhos únicos. Também é crível que a dependência mude de sentido: Chloe precisa dos cuidados de Diane, mas parece que a mãe é quem precisa cuidar da filha. E relações tóxicas em um ambiente onde deveria reinar o amor não são exclusividade da ficção (como no tristíssimo drama japonês Laço Materno, de 2020, igualmente disponível na Netflix). Veja a situação da cantora pop Britney Spears, 39 anos, que desde 2008 está sob tutela do pai — na pratica, ele comanda tudo na vida dela (comprove no documentário Framing Britney Spears, que estreou há poucos dias no Globoplay). Ou relembre o caso de Dee Dee Blanchard e Gypsy Rose, que guarda assustadoras semelhanças com o enredo de Fuja — não vou descrever aqui para não dar spoilers a quem desconhece a história que chocou os Estados Unidos em 2015.