Cabras da Peste, em cartaz na Netflix já há alguns dias, é o filme de que estamos precisando. Pelo menos aqui em casa, essa comédia fez toda a família rir à beça, relaxando um pouco em meio à tensão e à tragédia do coronavírus.
Trata-se de uma versão muito brasileira de uma tradição hollywoodiana, a das duplas policiais improváveis, formadas pelo acaso ou pelo infortúnio e destinadas ao desacerto ou à trapalhada. Pense em franquias como Um Tira da Pesada (1984-1994), com Eddie Murphy e Judge Reinhold, Máquina Mortífera (1987-1998), com Mel Gibson e Danny Glover, ou A Hora do Rush (1998-2007), com Jackie Chan e Chris Tucker. Tem de todas um tanto em Cabras da Peste, filme dirigido por Vitor Brandt, do satírico Copa de Elite (2014), e coescrito por ele e por Denis Nielsen, um dos principais roteiristas da série 3% (2016-2020).
Os tiras de temperamentos opostos que Brandt e Nielsen juntaram são interpretados por atores que já tinham uma química prévia, o que potencializa o humor por contraste almejado. Egressos do seriado Cine Holliúdy (lançado em 2019) — por si só uma divertida homenagem a Hollywood —, o cearense Edmilson Filho e o paulista Matheus Nachtergaele interpretam, respectivamente, Bruceuílis Nonato e Renato Trindade. Bruceuílis, como o nome de batismo indica, é filho de pais fãs dos filmes de ação norte-americanos dos anos 1980 e 1990. Cresceu aspirando ser policial, e é, mas deu azar de nascer na minúscula — e fictícia — Guaramobim, onde seu fôlego para perseguições e seus talentos nas mais diversas artes marciais só servem para capturar eventuais ladrões de ventilador. Até que um dia a cabra Celestina, figura ilustre da cidade e do seu Festival da Rapadura, acaba sequestrada (sem querer, é claro) por um traficante de São Paulo.
É a deixa para Bruceuílis viajar à capital paulista e formar a inusitada parceria com Trindade, um policial completamente avesso ao trabalho na rua e aos riscos inerentes da profissão. Seu negócio é no escritório, é "ser o cérebro das operações", ele diz à comandante do esquadrão de combate às drogas Thunderbolt, a capitã Priscila (Letícia Lima).
Contar mais detalhes da história seria prejudicar a experiência do espectador, pois boa parte da graça de Cabras da Peste advém de ser surpreendido pelas referências. Quase todas foram devidamente regionalizadas — spoiler: na voz da paraense Gaby Amarantos, a canção que toca no início do filme é a versão forró do tema de Um Tira da Pesada (The Heat Is On virou Calor do Cão). Com a dedicação e a sintonia de seu elenco, e seguindo o que o diretor inglês Edgar Wright fez em Chumbo Grosso (2007), outra paródia do gênero, o diretor Vitor Brandt abraça o absurdo e o exagero. Mesmo a morte vira piada, vide a impagável participação especial do ator pelotense Juliano Cazarré.
Apesar de despretensiosa, a comédia capricha na coreografia das cenas de ação — a propósito, o ator Edmilson Filho é tricampeão brasileiro de taekwondo. Apesar de não exigir inteligência do público para acompanhar a trama policial, o filme não se furta de aludir ao cenário político e econômico do país: o deputado Zeca Brito, encarnado por Marcondes Falcão, parafraseia o presidente Jair Bolsonaro com o slogan "Brasil acima de tudo e eu acima de todos", e a motorista de aplicativo interpretada por Evelyn Castro sintetiza a precarização do trabalho, a chamada uberização:
— Tô há 12 horas só na 7 Belo.
Apesar de ter sido produzido antes da pandemia, Edmilson Filho entende que a estreia de Cabras da Peste agora vem bem a calhar, como declarou ao Estadão:
— É um filme de aproximação, com um nordestino e um paulistano que se complementam. Mostra que as diferenças podem conviver. Nesse momento de tanta raiva solta por aí, o filme pode unir as pessoas, colocar a família toda para dar risada.
E apesar de não prometer uma possível continuação, Vitor Brandt disse que já teria o título, em outra divertida citação: Cabras da Peste 2: Miami Vixe.