Por cortesia dos organizadores do Fantaspoa, João Pedro Fleck e Nicolas Tonsho, eu pude assistir previamente a 15 filmes da 17ª edição do Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre, que começa nesta sexta-feira (9).
Com recursos da Lei 14.017/2020, a Lei Aldir Blanc, a mostra online exibirá até o dia 18, gratuitamente, 59 longas-metragens e mais de cem curtas. Basta fazer um cadastro na plataforma de streaming Wurlak (clique aqui).
A gratuidade, no atual cenário econômico, é um dos motivos que tornam imperdível o Fantaspoa. Mas há outros. A segurança de poder assistir em casa se faz acompanhar da disponibilidade: os filmes podem ser vistos a qualquer hora do dia.
Dos 59 longas, 52 são inéditos no Brasil, sendo que nove estarão sendo apresentados pela primeira vez fora de seus territórios de origem e quatro farão a estreia mundial (leia mais abaixo). Ah, importante: os 10 dias de Fantaspoa podem ser a única oportunidade de vê-los, pois, tradicionalmente, menos de 30% dos títulos trazidos pelo festival ganham lançamento comercial no país.
Passeando por gêneros como terror, ficção científica, thriller, fantasia, desenho animado e comédia, as obras costumam fugir bastante do convencional. Ou seja, oxigenam o cérebro do espectador, convidam a gente a descobrir caminhos e significados, às vezes nos expõem ao estranho ou ao perigoso para despertar emoções e reflexões.
Por fim, o Fantaspoa também constitui uma rara chance de darmos a volta ao mundo durante a pandemia: 29 países, de todos os continentes, estão representados. Sete deles eu destaco aqui:
A Risada (Canadá, 2020)
A cena de abertura de A Risada (Le Rire) não é o que se espera de um filme com esse título. Em um hospital, uma filha assiste aos estertores da mãe, que chora com raiva: "Foi tudo por nada! Que merda! Estou sozinha!". O que se sucede após sua morte também é inesperado: a câmera abandona o quarto e mostra o corredor hospitalar, onde, assim que irrompe uma vibrante trilha sonora, médicos, enfermeiras e pacientes começam a dançar. O último personagem a surgir, em mais uma desnorteante reversão de expectativa, é empurrado para fora de quadro e vai parar em uma fila que se assemelha à de prisioneiros de guerra — há militares armados dando ordens, ouve-se o som de helicópteros.
Só então deparamos com a protagonista, Valérie, e descobrimos que a tragédia prestes a se abater sobre ela acontece oito anos antes da história a ser contada pelo diretor e roteirista canadense Martin Laroche. Em uma interpretação arrebatadora de Léane Labrèche-Dor (preste atenção, por exemplo, no monólogo do mosquito), Valérie é enfermeira em uma casa geriátrica de Quebec. Ali, cuidando dos que estão mais perto de morrer, como a leitora voraz Jeanne (Micheline Lanctôt), ela acabou descobrindo uma nova forma de viver.
Dito assim, parece que, após seu estranho início, A Risada ganha ares de normalidade. Nada disso. Laroche segue surpreendendo o espectador, lançando mão de elementos que lembram uma versão leve do cineasta David Lynch (de Cidade dos Sonhos), como um núcleo de personagens aparentemente desconexos do tempo e do espaço da trama central e a sequência de Valérie em um palco, diante de uma plateia, em uma espécie de show stand-up de comédia. A essa altura, já estará claro que o filme investe no surrealismo para tratar de um tema muito real (e atemporal): os traumas de guerra, a dor e a culpa dos sobreviventes e dos assassinos, o difícil, mas necessário, e talvez inevitável, movimento de seguir em frente. "A vida sempre continua", diz a protagonista. Resta-nos escolher rir ou chorar.
Black Medusa (Tunísia, 2020)
Enquanto O Homem que Vendeu sua Pele, indicado ao Oscar de melhor filme internacional, não estreia no Brasil, o Fantaspoa oferece uma oportunidade de conhecermos o cinema contemporâneo da Tunísia. O curioso é que há mais duas aproximações possíveis com concorrentes à premiação da Academia de Hollywood: Black Medusa foi filmado com um preto e branco algo fantasmagórico, como Mank, e conta uma história de revanche feminina, como Bela Vingança.
Trata-se do primeiro longa-metragem ficcional da dupla de diretores e roteiristas Youssef Chebbi e ismaël (que assina assim mesmo, com a inicial minúscula). Interpretada por Nour Hajri, Nada é uma jovem que leva uma vida dupla. De dia, trabalha discretamente em um escritório, onde sequer fala — comunica-se através de um aplicativo de voz do seu celular. À noite, também em silêncio, seduz homens nos bares e nas boates de Túnis, a capital do país africano. Tal qual Medusa, a personagem da mitologia grega estuprada por Poseidon, Nada parece ter sido vítima de violência sexual. Assim, passa a transformar homens em pedras — ou melhor, em lápides. Suas mortes são representadas sempre com uma alusão à penetração, e nesses momentos o rosto impassível de Nada transfigura-se em um misto de prazer e sofrimento. Sua missão é sua maldição.
A rotina da protagonista é um pouco sacudida pelo flerte da colega Noura (Rym Hayouni). "Pouco sacudida" porque Black Medusa nunca acelera seu ritmo narrativo. Chebbi e ismaël permitem-se longos planos das duas personagens passeando em um parque, até que elas somem de cena, mas a câmera continua mostrando o local. É como se estivessem não ficcionalizando, mas documentando um ciclo de abusos cometidos contra mulheres.
Bloodshot Heart (Austrália, 2020)
Bloodshot Heart é o que poderia se chamar de um filme "austaliano", uma mistura de Austrália com Itália. A começar por seu diretor e roteirista, Parish Malfitano, que, em seu longa-metragem de estreia, tem como protagonista outro descendente de italianos, o instrutor de autoescola Hans (encarnado por Richard James Allen). Aos 44 anos, Hans ainda mora com uma típica mamma, Catherine (Dina Panozzo), tão protetora quanto intrusiva.
Os dois vivem uma relação edípica — vide a cena da dança entre mãe e filho, para a qual os dois se aprontam como se fossem sair para um encontro romântico. Esse relacionamento é abalado quando aparece Matilda (Emily David), uma jovem que precisa de um quarto e que parece estar em fuga — inclusive da própria identidade. Hans associa a garota a uma personagem do seu passado, Sarah (Hazel Anikki Savolainen), que vemos em lembranças filmadas em super-8 de um dia ensolarado na praia.
A textura dessas imagens é um dos elementos que Parish Malfitano importou do giallo, gênero do cinema italiano que registrou seu auge na década de 1970 (a estética de Bloodshot Heart é baseada nesse período) e teve como expoentes os diretores Mario Bava (1914-1980), de Seis Mulheres para o Assassino (1964), Lucio Fulci (1927-1996), de O Estripador de Nova York (1983), e Dario Argento, 80 anos, de Suspiria (1977). Embora não haja um assassino serial, veremos sangue, e também se fazem presentes no filme o trauma do protagonista, a obsessão erótica, a fantasia que altera a percepção da realidade, as sequências de alucinação. Uma delas é experienciada por Hans dentro de um cinema, onde entrou para assistir a um fictício filme giallo, Il Sangue di Due Donne (O Sangue de Duas Mulheres).
O Grande Salto (Irã, 2021)
Sinal do prestígio internacional adquirido pelo Fantaspoa ao longo de quase duas décadas, a 17ª edição do festival promoverá as primeiras exibições de nove filmes fora de seus países de origem e terá quatro estreias mundiais: Este Jogo Se Chama Assassinato (EUA), Mister Limbo (EUA), A Nau dos Loucos: Mergulho e Decolagem de Pazucus (Brasil) e O Grande Salto (Irã).
Com o título original de Shirjeh-ye Bozorg, este último é tão inédito, que ainda nem tem registro no IMDb, o maior banco de dados da internet sobre cinema. Escrito e dirigido por Karim Lakzadeh, trata-se de um filme capaz de merecer vários adjetivos, alguns até antagônicos: lindo, triste (raras vezes um "Eu te amo" provocará tamanho choque), gracioso, filosófico, aventureiro, metafórico, político.
O grande salto também deve ser dado pelo público. Quanto menos se souber da trama, melhor. Não que estejamos diante de um thriller de mistério, mas a obra será mais encantadora se nos deixarmos levar, como acontece com a protagonista, Maryam (interpretada por Sonia Sanjari). Empregada da cozinha de um hospital, ela é avisada por uma colega que um homem quer vê-la. É o irmão de seu ex-marido. Maryam reluta, mas acaba indo falar com o sujeito, que revela: o filho dela, dado como morto, está vivo. Eis o ponto de partida de uma jornada cheia de surpresas pelo Irã, na companhia de três excêntricos artistas circenses, sob uma trilha sonora ao mesmo tempo fundamental (por ditar o clima das cenas) e cautelosa (por não ser onipresente nem ribombante) e pontuada por reflexões sobre morte e ausência, sobre reparação e credibilidade, sobre viver em fuga _ seja de algo físico, externo, seja de um sentimento _ ou em busca (uma personagem diz ser movida por "procurar pela estrada algo que não existe").
A Dark, Dark Man (Cazaquistão, 2019)
A cinematografia do Cazaquistão — país que se tornou independente da então União Soviética em 1992 _ é uma incógnita para a maioria dos brasileiros. Talvez o único título mais conhecido seja O Guerreiro Genghis Khan (2007), uma coprodução internacional dirigida pelo russo Sergei Bodrov que concorreu ao Oscar de melhor filme internacional. E talvez o principal contato do público nacional com essa nação situada entre o Leste Europeu e a Ásia Central tenha sido pelas comédias escrachadas de Borat, o fictício repórter de TV cazaque criado pelo ator inglês Sacha Baron Cohen.
Assistir a A Dark, Dark Man no Fantaspoa é perceber que Borat não distorceu muito a realidade. Ainda que com o filtro da ficção, o filme policial assinado por Adilkhan Yerzhanov retrata o que dizem as estatísticas: estamos em um país com altos índices de corrupção (apareceu no 94º lugar no ranking da Transparência Internacional divulgado no final de janeiro) e de violência contra mulheres e crianças, ao passo em que é baixo o nível de liberdade de imprensa (158º colocado no último levantamento dos Repórteres Sem Fronteiras).
O protagonista é o detetive Bekzat (Daniar Alshinov),nos seus 20 e tantos ou 30 e poucos anos, encarregado de investigar um crime já solucionado: mandas-chuvas da cidadezinha forjaram provas para atribuir a um doente mental o estupro e o assassinato de um menino. Mas quando a jornalista Ariana (Dinara Baktybaeva) chega, um resquício ético — ou então um interesse romântico, que seja — passa a interferir nas ações de Bekzat. O resultado é um filme com um toque dos irmãos norte-americanos Ethan e Joel Coen (pense em Fargo ou até Onde os Fracos Não Têm Vez), célebres por extrair humor de tipos interioranos envolvidos em situações mórbidas, um filme em que uma citação do filósofo francês Montesquieu (1689-1755) — aquela sobre o medo como princípio de um governo despótico e sobre como um povo ignorante não precisa de muitas leis — coexiste com a impublicável piada do alce educado, um filme em que a placidez das estepes ao fundo e o ritmo contemplativo contrastam com personagens truculentos, autoridades corruptas e milícias armadas.
Dancing Mary (Japão, 2019)
"Kenji faz parte da equipe de construção de um shopping center. Para isso, um antigo salão de dança deve ser destruído, mas os esforços para demolir o prédio são sabotados por um poder misterioso. Nenhum exorcista consegue encontrar a solução, mas a estudante Yukiko, que tem a habilidade de falar com fantasmas, descobre que é o espírito da dançarina Mary que amaldiçoa o local."
A sinopse não dá conta de todos os temas e gêneros pelos quais Dancing Mary rodopia em 90 minutos de duração. Dirigido pelo japonês SABU, realizador do premiado Miss Zombie (2013), o filme recebeu o prêmio especial do júri na edição de 2020 do Fantasporto, tradicional festival português de cinema fantástico. A obra alterna momentos de melodrama romântico com outros de ação à la samurai, momentos de comédia satírica (vide a ligação entre o poder público e o submundo do crime) com outros de terror sobrenatural.
Por meio de seus fantasmas, o cineasta discute a necessidade de termos um propósito (e de não deixarmos assuntos pendentes, como é típico em narrativas do gênero) e de buscarmos, como diz um personagem, o equilíbrio entre a emoção e o dever. A mensagem mais bonita é a da empatia: Kenji (interpretado por Naoto, cantor e dançarino do grupo de J-Pop Exile) só consegue ver espíritos presos à Terra quando está de mãos dadas com Yukiko (Ainda Yamada). Precisamos nos conectar emocionalmente para enxergar do que a vida realmente é feita.
História do Oculto (Argentina, 2020)
O Fantaspoa faz crescer a admiração pelo cinema argentino. No ano passado, dos quatro títulos selecionados, três se destacaram no festival: Tóxico, Zumbis no Canavial: O Documentário e Pedra, Papel e Tesoura, ganhador dos prêmios de melhor filme, diretor, roteiro e atriz na Mostra Ibero-Americana. Em 2021, o país duplicou sua participação. Entre os oito longas, estão A Sombra do Galo, thriller de Nicolás Herzog que terá sua primeira exibição internacional, e História do Oculto, longa de estreia de Cristian Ponce (criador da série de terror A Frequência Kirlian, disponível na Netflix) que participou do aclamado Festival de Sitges, na Catalunha, uma das inspirações do Fantaspoa.
Ambientada em 1987 e filmada em preto e branco, a trama envolve o espectador ao acompanhar os bastidores de um programa de TV fictício, o 60 Minutos Antes da Meia-Noite. O apresentador (vivido por Héctor Ostrofsky) vai receber três convidados: um senador, um sociólogo e um grande empresário, Adrián Marcato (Germán Baudino, ótimo no papel), que pode fazer uma revelação chocante: o presidente do país estaria vinculado a uma seita satanista. Enquanto isso, a equipe de produção torce para que Marcato abandone o discurso evasivo ("Isso eu posso responder mais tarde") e enfrenta imprevistos, ameaças e o sobrenatural.
Como de hábito no Fantaspoa, História do Oculto não se prende a um só gênero. O horror convive com o comentário político e a sátira — para além das citações aos clássicos O Bebê de Rosemary (1968) e Todos os Homens do Presidente (1976), há um impagável comercial que vende como paraíso turístico e "orgulho nacional" as Ilhas Malvinas, palco de um conflito armado, em 1982, entre a Argentina e o Reino Unido, que então voltou a ter soberania sobre o arquipélago (chamado pelos ingleses de Falklands).