Já vi 25 dos 47 longas-metragens em cartaz no Fantaspoa. Pude assistir a sete antes de começar a 16ª edição do Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre, que começou na sexta-feira (24), e acordei às 6h nos três dias do fim de semana para fazer maratonas.
Que foram muito recompensadoras. É verdade que alguns títulos valeram apenas pela curiosidade geográfica, a satisfação de riscar mais um país em um arquivo mental – como Diabo Vermelho, do Panamá, ou A Maldição de Valburga, da Eslovênia –, e que outros frustraram as expectativas geradas pos suas sinopses (casos de Limbo, da Alemanha, e Pornô, dos Estados Unidos). Mas o saldo do evento, até agora, é extremamente positivo. Tanto que tive de brigar comigo mesmo para fechar um top 10 – uma das soluções foi criar duas categorias de menções honrosas.
São filmes que se destacam pela qualidade, ou pela inventividade, ou mesmo pela ousadia. São filmes que fogem da mesmice, que surpreendem e que talvez nunca sejam lançados comercialmente no Brasil – portanto, corra para o app.darkflix.com.br, faça seu cadastro gratuito, aperte uns botõezinhos e escolha entre os 10 que considero imperdíveis. Ainda dá tempo de ver todos, pois o Fantaspoa termina só no domingo (2) que vem.
Eis a lista, por ordem de preferência:
Ausente (Finlândia, 2019), de Arttu Haglund
É provavelmente o mais dilacerante dos filmes que já vi no Fantaspoa. E isso que começa em um tom meio de comédia: um pai, Matti Koski (interpretado por Panu Tuomikko), está angustiado tanto na vida familiar quanto na profissional. Certo dia, ele descobre que tem capacidade de se teletransportar, aleatoriamente, para qualquer parte do mundo. Aí, se por um lado essas viagens relâmpago servem como uma válvula de escape e lhe trazem momentos de alegria, por outro vai criando um fosso entre Matti, sua esposa e a filha do casal, Emma. Ficção científica que espelha a vida real, tem um dos epílogos mais impactantes que vi em 2020.
Zumbis no Canavial: O Documentário (Argentina, 2019), de Pablo Schembri
Trata-se de uma investigação sobre um obscuro filme argentino de 1965 que teria influenciado o clássico americano A Noite dos Mortos-vivos (1968), de George A. Romero. É também uma análise sobre a simbologia do cinema de terror e um lamento inconsolável sobre os tempos de ditadura militar e censura – que tristeza nunca mais poder assistir a um filme! Ah, e prepare-se para uma surpresa.
Zana, de Antoneta Kastrati (Kosovo, 2019)
Na abertura, a protagonista, Lume (Adriana Matoshi), está em uma paisagem bucólica, levando uma vaca de volta para sua propriedade. Ao atravessar um córrego, tanto a personagem quanto o espectador tomam um susto: a vaca que estava às costas de Lume desaparece, e à frente, meio mergulhada na água, surge uma caveira bovina ensanguentada. Mas engana-se quem imagina que este será um filme de pavor e sangue. Zana é sobre trauma – o de Lume e o do próprio Kosovo. Falei um pouco mais sobre a obra na coluna da semana passada (clique aqui).
Barry Fritado (África do Sul, 2020), de Ryan Kruger
Com inspiração no cinema de John Carpenter e de David Cronenberg, tem como protagonista um doidão viciado, casado e pai de um gurizinho. Durante uma ressaca, Barry é abduzido. Um alienígena possui seu corpo e inicia uma jornada de descobrimento da vida humana aos pés da Table Mountain, na Cidade do Cabo, em uma "aventura regada a drogas, sexo e violência". Mas, entre doses de heroína, sangue e secreções, existe um lugar generoso para o afeto, para a reconciliação e até para o heroísmo. Além de muito espaço para a ousadia visual e para um hipnótico e incômodo trabalho de som. Leia mais sobre Barry Fritado aqui.
Tóxico (Argentina, 2020), de Ariel Martínez Herrera
Quis o destino que um punhado de filmes e séries produzidos antes do coronavírus tenham vindo à tona durante a pandemia, trazendo junto reflexões sobre questões que a covid-19 suscitou. Foram os casos, por exemplo, do espanhol O Poço e do canadense O Declínio. Mas nenhum título foi mais premonitório do que o argentino Tóxico. Estão lá uma pandemia – mas de insônia, e com um tom mais cômico –, as máscaras, a paranoia, a fuga para o Interior... Clique aqui para ler mais sobre o filme.
Aviva, de Boaz Yakin (EUA/França, 2020), de Boaz Yakin
Assegurou sua presença na lista por ser um filme apaixonadamente pretensioso. A sinopse até que é simples: depois de se conhecerem por redes sociais, uma jovem de Paris, Aviva, e um jovem de Nova York, Eden, decidem testar aquela paixão no mundo real. Só que esse mundo real é uma encenação, os personagens têm duplos, e todos passam o tempo todo ora dançando, ora transando, ora tendo D.R.s – ou fazendo tudo simultaneamente! Leia mais clicando aqui.
A Noiva de Berlim (EUA/Alemanha, 2019), de Michael Bartlett
Ambientado na Alemanha de 1986 e feito como homenagem ao escritor E.T.A. Hoffmann (1776-1822) – um dos pais da literatura fantástica –, é um filme quase mudo (aliás, nem precisaria dos diálogos) sobre um triângulo amoroso entre dois homens e uma manequim. Um deles é um solitário catador de papéis, o outro, um músico que perdeu o braço direito. Surrealismo e sexualidade se misturam de um jeito que nos deixam atônitos.
O Bando (Espanha, 2019), de C. Martin Ferrera
A sinopse era irresistível: um homem acorda em um carro, no meio da floresta, e percebe que está inalando monóxido de carbono. Percebe também que está acorrentado. E que não está sozinho: há outros três homens na mesma situação, vestidos com a mesma roupa. Por quê? Como eles foram parar lá? Quem está por trás disso? O Bando promete e entrega: 71 minutinhos de mistério e tensão, mas também de crítica a uma ética perversa que, paulatinamente, vem sendo posta em xeque. Um suspense antenado a nosso tempo.
Estranho (Ucrânia, 2019), de Dmitriy Tomashpolskiy
Já vi filmes em que todos os planos são caprichados, mas Estranho é coisa de outro mundo. Cada imagem é um espetáculo arquitetônico. Simetrias, linhas convergentes, profundidade... Tudo contribuindo para uma espécie de hipnose iniciada com o espantoso desaparecimento de um time de nado sincronizado.
A trama, a propósito, que em um momento cita conceitos de física nuclear, pode parecer hermética demais ou sem pé nem cabeça – você decide. Mas o clima e o visual justificam estar entre os imperdíveis do Fantaspoa. Afinal, até os personagens são objetos de arquitetura e decoração: movem-se respeitando aquelas mesmas regras, perfilam-se de modo a nunca – nunca – ficarem sobrepostos, criam molduras para a protagonista, a detetive com algum dom paranormal que investiga o caso. Fazem, fora d'água, o balé sincronizado da equipe desaparecida.
Bad Black e Crazy World (Uganda, 2016 e 2019), de Nabwana I.G.G.
O Fantaspoa oferece uma chance ímpar de conhecer o cinema de Uganda, mais precisamente o de Wakaliwood, onde um faz-tudo virou fenômeno africano. Nabwana I.G.G. dirige, produz, escreve os roteiros, opera a câmera, edita, inserindo os efeitos especiais assumidamente toscos, e narra seus filmes de ação. O humor é garantido por seus comentários que extrapolam as tramas amalucadas sobre pais vingativos e gangues infantis – não me peçam para tentar resumi-las!
Menções honrosas
Melhor filme que ainda não pode ser visto – Vai para Antologia da Pandemia, que só fica em cartaz de sexta (31) a domingo (2). Escrevi sobre esses curtas na coluna da semana passada (clique aqui).
Melhor filme que não faz minha praia – Não sou um entusiasta do casamento entre humor e gore, mas a coprodução entre Austrália e Inglaterra Two Heads Creek funcionou comigo, graças a um elenco homogêneo e personagens carismáticos. O diretor e roteirista Jesse O'Brien conta a história de dois irmãos gêmeos, que, após a morte da mãe adotiva, partem para a Austrália em busca da biológica – mas acabam descobrindo um segredo indigesto.