O Fantaspoa – Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre – nasceu em 2005 sob o signo do terror, exibindo títulos referenciais como Repulsa ao Sexo (1965), de Roman Polanski, O Homem de Palha (1973), de Robin Hardy (fonte de inspiração para o recente e excelente Midsommar, de Ari Aster), Suspiria (1977), de Dario Argento, Nosferatu: O Vampiro da Noite (1979), de Werner Herzog, e Terra dos Mortos, lançado no mesmo ano pelo veterano mestre George A. Romero. Mas já faz algum tempo que o evento se abriu para gêneros distintos.
Neste ano, na 16ª edição, há comédias, aventuras, ficção científica, animação, documentário e até um musical entre os 47 longas-metragens de 29 países que serão exibidos gratuitamente de 24 de julho a 2 de agosto. A propósito: as sessões ocorrem na plataforma Darkflix (clique aqui para fazer seu cadastro), e cada título tem um limite de 5 mil visualizações ao longo do festival (até as 9h30min desta sexta-feira, uma instabilidade técnica impedia a exibição de todos os longas). Clique aqui para ver toda a programação.
Os seis filmes que destaco nesta coluna, vistos antes de o Fantaspoa começar graças a uma gentileza dos seus organizadores, permitem tanto fazer uma volta ao mundo (estão representadas África, América do Norte, América do Sul, Ásia e Europa) quanto constatar essa fluidez e essa variedade de gêneros. Tem desde uma trama sul-africana em que um viciado em drogas é abduzido por um E.T. até uma comédia indiana sobre um personagem de filme que desaparece, passando por um musical pleno de dança e de sexo.
Embora os estilos cinematográficos sejam bem diferentes, existe um denominador comum: nos seis títulos (todos com menos de duas horas), nunca sabemos para onde estamos indo. Surgem à frente surpresas e espanto (para os espectadores), coragem e desprendimento (dos realizadores e dos elencos), abrindo nossos olhos para um cinema nada convencional. Um cinema, ora, fantástico.
Zana, de Antoneta Kastrati (Kosovo, 2019)
Indicado para a seleção do Oscar de melhor filme internacional deste ano, Zana convida o público a ingressar em um mundo singular: o da Europa muçulmana. É essa a religião predominante no Kosovo, um pequeno país situado no centro dos Bálcãs, sem litoral, e que ainda não teve a independência totalmente reconhecida.
O filme escrito e dirigido por Antoneta Kastrati se passa no interior e tem como protagonista Lume (Adriana Matoshi). Quando ela surge na tela, está em uma paisagem bucólica, levando uma vaca de volta para sua propriedade. Ao atravessar um córrego, tanto a personagem quanto o espectador tomam um susto: a vaca que estava às costas de Lume desaparece, e à frente, meio mergulhada na água, surge uma caveira bovina ensanguentada.
Mas engana-se quem imagina que este será um filme de pavor e sangue. Zana é sobre trauma – o de Lume e o do próprio Kosovo. Ambos são atormentados pelas lembranças da guerra ocorrida em 1999, que matou a filha única da personagem, Zana. Agora, Lume vive pressionada pelo marido e pela sogra para engravidar novamente. Mas como pensar em vida se a morte não sai da alma?
Aviva, de Boaz Yakin (EUA/França, 2020)
Por essa o cineasta Christopher Nolan não esperava: no mesmo ano de lançamento de seu aguardado e sucessivamente adiado Tenet, surgiu outro filme com um palíndromo no título, outro filme que embaralha as percepções do espectador. Aviva também é inesperado por causa do currículo anterior do diretor e roteirista americano Boaz Yakin. A cinebiografia esportiva Duelo de Titãs (2000), a comédia dramática Grande Menina, Pequena Mulher (2003), o thriller O Código (2012) e o infantil Max: o Cão Herói (2015) jamais sugeriram o que ele fez em Aviva.
A sinopse até que é simples: depois de se conhecerem por redes sociais, uma jovem de Paris, Aviva, e um jovem de Nova York, Eden, decidem testar aquela paixão no mundo real. Só que esse mundo real é uma encenação: no início do longa, em um set de filmagem, a coreógrafa e bailarina Bobbi Jene Smith, nua em uma cama, apresenta os operadores de câmera, explica que, como a trama demanda bastante momentos de dança, Boaz Yakin achou melhor recrutar dançarinos que pudessem atuar do que o contrário e informa que o seu papel, na verdade, é o do que "geralmente identificamos" como homem. Ela é Eden, mas Eden também tem o corpo e a voz de Tyler Phillips, e é ele quem vai receber no aeroporto Aviva, inicialmente encarnada pela ruiva Zina Zinchenko, mas depois também pelo barbudo Or Schraiber. São personalidades duplas. Confuso? Bem, o amor é uma confusão, uma explosão de sentimentos, um choque de idealizações, um frenesi e, não raro, um desencanto.
É isso o que dizem e o que expressam os personagens, todos envolvidos em números musicais com coreografias criativas (mas nada hollywoodianas), D.R.s ora brilhantes, ora maçantes e fartas cenas de sexo. Vale avisar aos mais pudicos: há nu frontal masculino e relações homossexuais – que, na verdade, talvez não sejam exatamente homossexuais. Confuso de novo? Assista ao filme.
Barry Fritado, de Ryan Kruger (África do Sul, 2020)
Antes mesmo dos créditos iniciais, há um aviso ao espectador: "Este filme foi classificado para 18 anos, o que significa que é para adultos e mais ninguém", diz um homem careca e engravatado que lembra os apresentadores de TV dos anos 1980. A estética não é por acaso. A sequência de abertura, com um globo terrestre no qual vamos gradativamente nos aproximando do território da África do Sul, embalados por uma trilha sonora de sinistros sintetizadores, ecoa a do clássico O Enigma do Outro Mundo (1982), de John Carpenter – uma influência declarada do diretor e roteirista Ryan Kruger em seu primeiro longa-metragem.
O que vem a seguir ratifica a inspiração (que inclui David Cronenberg) e justifica o alerta. Barry, como diz a sinopse oficial, é um doidão viciado em drogas, casado e pai de um gurizinho, que, durante uma ressaca, é sequestrado por alienígenas. Um extraterrestre possui (em um duplo sentido) seu corpo e inicia uma jornada de descobrimento da vida humana aos pés da Table Mountain, na Cidade do Cabo, em uma "aventura regada a drogas, sexo e violência". E, de fato, há muito disso em Barry Fritado, mas talvez menos do que se possa imaginar. Entre doses de heroína, sangue e secreções, existe um lugar generoso para o afeto, para a reconciliação e até para o heroísmo.
Não é um filme perfeito, claro – o tom episódico deixa vácuos na narrativa, por exemplo –, e obviamente não é para todos os olhos. Mas me abduziu com sua mistura de ousadia visual e coração mole, edição trepidante e cenas contemplativas, música hipnótica e ruídos incômodos – tudo isso girando em torno da atuação assombrosa de Gary Green como o protagonista. Com raras falas, ele nem precisa da voz para comandar o espetáculo – usa seus membros (todos eles!), seu jeito de andar e as expressões de um rosto esquisito para transmitir espanto, causar repulsa ou inspirar nossa torcida.
Tóxico (Argentina, 2o20)
Quis o destino que um punhado de filmes e séries produzidos antes da pandemia acabassem refletindo questões trazidas pelo coronavírus. No filme canadense O Declínio, por exemplo, um pequeno grupo de homens e mulheres vê seu treinamento com um youtuber para um desastre natural ou uma doença devastadora descambar para a tragédia quando um acidente acontece e eles são forçados a lidar com dilemas morais. No drama distópico espanhol O Poço, um presídio vertical espelhou a lógica da sobrevivência egoísta e a desigualdade social escancaradas pela covid-19. Mais recentemente, vieram os seriados apocalípticos Noite Adentro (Bélgica) e O Expresso do Amanhã (Estados Unidos).
Mas nenhum título foi tão premonitório quanto o argentino Tóxico, dirigido e coescrito por Ariel Martínez Herrera. Como no mundo real, há uma pandemia que obriga as pessoas a usarem máscara e que deixa todos paranoicos. A diferença é que, na ficção, o tom é de comédia, e o vírus provoca insônia – ainda que as consequências também se tornem trágicas. Afinal, já imaginaram o que é não conseguir dormir?
O fio condutor da história é o casal Laura e Augusto, interpretados por Jazmín Stuart (diretora e roteirista de Pistas para Voltar para Casa) e Agustín Rittano (visto em Aterrorizados). A química romântica entre os dois não está nos melhores dias, mas a cômica, sim. São eles que sustentam o interesse por um roteiro assumidamente frouxo na porção ficção científica. A exemplo do que o coronavírus deflagrou, Laura e Augusto fogem da cidade grande para um lugar supostamente protegido no interior. Embarcam em um motor-home – cujo ambiente interno parece bem maior do que o exterior sugere – e vão vivendo e conhecendo situações e personagens surreais. como um rapaz que fez um furo na máscara para poder fumar e um sujeito de smoking que vive falhando em cometer suicídio.
Antologia da Pandemia (Brasil,2020)
Coletâneas de curtas-metragens são uma forma rápida e eficiente de espelhar as visões distintas e as múltiplas inquietações que eventos transformadores do mundo suscitam. Em 2002, por exemplo, 11 cineastas de 11 países retrataram ou refletiram sobre o 11 de Setembro – o mais perturbador foi o do mexicano Alejandro González-Iñárritu, em que sons e imagens-relâmpago de pessoas se atirando do World Trade Center reconstituem o ataque ao edifício nova-iorquino. Nascida de um concurso proposto pelo Fantaspoa, Antologia da Pandemia faz uma fotografia dos medos e dos pesadelos despertados pelo coronavírus e pelo consequente distanciamento social. São 13 curtas, todos feitos na casa de cada diretor, que demonstraram criatividade para driblar a falta de recursos, de equipe técnica e de elenco.
Em Quarentena Sem Fim, de Fabrício Bittar, o isolamento já dura dois anos, para desespero de um casal afastado. No uruguaio O Último Dia, de Guillermo Carbonell, o fim do confinamento esconde um mal maior. A Mancha na Parede, de Daniel Pires, sintetiza nossas paranoias sanitárias. Barata, do americano Emerson Niemchick, é um terror sobre prioridades versus ganância. O gaúcho Giordano Gio assina um dos curtas que investem em uma certa comicidade, Psicopompo, misturando os panelaços contra o presidente Jair Bolsonaro com uma maldição milenar. E Às Vezes Ela Volta, de Matheus Maltempi, é uma história sobre duas irmãs que soa como uma versão dos mórbidos contos de Guy de Maupassant (1850-1893) para a era dos aplicativos e das redes sociais.
Atenção: Antologia da Pandemia só pode ser assistida nos dias 31 de julho, 1º e 2 de agosto.
RK/RKAY, de Rajat Kapoor (Índia, 2019)
E se Woody Allen fosse indiano? É o que vem à mente diante desta comédia escrita, dirigida e estrelada por Rajat Kapoor. RK/RKAY remete a um clássico do cineasta americano, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), em que um herói das matinês dos anos 1930 sai da tela e vem para o mundo real da ficção. A aproximação também ocorre com Desconstruindo Harry (1997), em que um escritor é confrontado por seus personagens. Há até uma trilha sonora jazzística, embora contemporânea.
Na trama indiana, Kapoor faz o papel de um diretor e roteirista homônimo que está finalizando seu novo filme, uma mistura de romance e policial, quando um imprevisto acontece: o protagonista desaparece. Não o ator – que é ele próprio, RK – mas o personagem que escreveu e interpretou, Mahboob. Sumiu de todas as cenas já filmadas. Virou um Homem Invisível, como o do cartaz da obra de horror e ficção científica emoldurado na parede da sala de montagem.
Pressionado pelo produtor para entregar o filme no prazo e intrigado pela situação, o criador parte à procura da criatura. As únicas diferenças entre os dois é que Mahboob ostenta um bigode e uma joie de vivre – evidenciada pelo rosto sempre iluminado, enquanto o cineasta está sempre na sombra. RK pode estar por trás de todos os pensamentos de Mahboob, pode ter redigido todas as suas falas, mas como a esposa de RK diz, é o personagem quem de fato as vive, quem de fato parece entender o que é o amor.