O Caso Dreyfus, que teve início em 1894, na França, é considerado um símbolo da injustiça e um prenúncio da onda antissemita que desembocaria na Segunda Guerra Mundial. Não tardou a despertar o interesse do cinema, arte que dava seus primeiros passos: em 1899, por exemplo, o pioneiro Georges Méliès dirigiu 11 curtas-metragens de um minuto cada, nos quais reconstitui a prisão e os julgamentos do capitão erroneamente acusado de traição. No mesmo ano, nos Estados Unidos, o ator Bernard H. Paris viveu Alfred Dreyfus (1859-1935) duas vezes. Mais de um século e dezenas de longas, séries e telefilmes depois, a história volta às telas. Em O Oficial e o Espião, que entrou em cartaz na quinta-feira (12), o episódio continua um exemplo de como as mentiras podem se sobrepor à verdade, como o Estado pode ser arbitrário em relação ao indivíduo, como a sociedade pode ser preconceituosa. Mas também passa a refletir no passado, sob uma ótica um tanto distorcida, o presente de seu diretor, Roman Polanski.
Distorcida porque, afinal, Dreyfus era inocente, e Polanski cometeu pelo menos uma vez um crime sexual.
Quem sugere essa comparação é o próprio cineasta franco-polonês, que, aos 86 anos, tem vivido um exílio na França. Em 2019, o realizador de O Bebê de Rosemary (1968) e O Pianista (2002) não compareceu à estreia de O Oficial e o Espião no Festival de Veneza, na Itália, para não correr risco de extradição aos Estados Unidos – onde foi condenado por drogar e estuprar uma adolescente em 1977. Pelo menos outras quatro mulheres acusaram Polanski de abuso sexual nos últimos anos (leia mais no quadro abaixo). Por isso, a presença do filme na competição causou desconforto na diretora argentina Lucrecia Martel, presidente do júri que, ao fim, concedeu seu Grande Prêmio a essa adaptação de um romance do escritor inglês Robert Harris. Polanski sente-se acossado também pela imprensa, por isso, não costuma dar entrevistas. Para o lançamento de seu 22º longa, divulgou uma conversa conduzida pelo escritor Pascal Bruckner, autor do romance Lua de Fel (que o diretor levou ao cinema em 1992).
Bruckner pergunta: "Como um judeu que foi caçado durante a Segunda Guerra Mundial e um cineasta perseguido pelos stalinistas na Polônia, você sobreviverá ao atual macarthismo neofeminista que, além de acuá-lo em todo o mundo e tentar impedir a exibição de seu filmes, fez você ser expulso da Academia de Hollywood?".
Polanski responde: "Trabalhar, fazer um filme como esse me ajuda muito. Na história, às vezes encontro momentos que eu experienciei, vejo a mesma determinação de negar os fatos e me condenar por coisas que não fiz. Muitas das pessoas que me atormentam não me conhecem e não sabem nada sobre o caso... Meu trabalho não é terapia, no entanto, devo admitir que estou familiarizado com muitos dos trabalhos do aparato de perseguição mostrado no filme".
A indignação de Polanski está expressa na poderosa cena de abertura. É o dia 3 de janeiro de 1895. A câmera, em uma panorâmica, mostra um batalhão de soldados franceses perfilados para a degradação de Alfred Dreyfus (interpretado por Louis Garrel). Suas insígnias militares são arrancadas do uniforme, e sua espada é quebrada. Enquanto isso, oficiais despejam seu preconceito.
— Como ele chora — diz um.
— Como um alfaiate judeu que chora por seu dinheiro perdido — comenta o coronel Picquart (Jean Dujardin, vencedor do Oscar de melhor ator por O Artista).
Dreyfus grita sua inocência – um brado que, mais adiante, em um novo julgamento, será contrastado pela voz tímida e quase sumida de um homem quebrantado pelo isolamento na Ilha do Diabo. Um eficiente casamento entre montagem (de Hervé de Luze, parceiro habitual de Polanski) e trilha sonora (composta pelo excelente Alexandre Desplat, vencedor do Oscar por O Grande Hotel Budapeste e A Forma da Água) apresenta o local de sua prisão perpétua, situado na Guiana Francesa. Primeiro, a ilha enche a tela. Em seguida, vai ficando mais distante e menor, com cada transição sendo marcada por ataques de tensão na música.
A Ilha do Diabo pode ser vista como a caracterização geográfica da cultura do cancelamento, o boicote direcionado a uma personalidade que agiu de maneira preconceituosa, condenável ou polêmica. Questionado por Bruckner se outro Caso Dreyfus seria possível na atualidade, Polanski foi peremptório:
— Definitivamente. Todos os ingredientes estão aí para que aconteça: acusações falsas, procedimentos judiciais ruins, juízes corruptos e, acima de tudo, "mídias sociais" que condenam sem julgamento justo ou direito de apelação.
A prática é bastante frequente nas redes sociais, mas também acontece de corpo presente. Em fevereiro, na noite do César, a maior premiação do cinema francês, assim que o nome de Polanski (ausente na festa) foi anunciado como o de melhor diretor, as atrizes Noémie Merlant e Adèle Haenel (a dupla de Retrato de uma Jovem em Chamas) levantaram-se e retiraram-se da cerimônia.
Habilmente, Polanski também "retira-se" de cena em O Oficial e o Espião (mas o diretor aparece como figurante em um concerto de câmara, bem ao centro). O foco não está em Dreyfus, o que poderia acentuar sua vitimização, mas em Picquart. Depois da prisão do capitão, o coronel assume o comando do serviço de inteligência. Aos poucos, descobre que as provas de traição foram forjadas e que seus superiores estavam cientes da farsa ("Por que se importar com um judeu preso em uma ilha?", indaga um general). Colocando sua ética acima do antissemitismo assumido ("Não gosto de judeus, mas jamais deixarei isso derivar para a discriminação profissional", diz o protagonista a Dreyfus em um flashback dos tempos de Escola Militar), Picquart resolve investigar por conta própria. É assim que vai conhecer personagens como o grafologista Bertillon (Mathieu Amalric, uma espécie de alívio cômico) e o escritor Émile Zola (André Marcon), que, com seu famoso artigo J'Accuse, publicado em janeiro de 1898, convulsionou a sociedade francesa ao revelar fatos escondidos pelo exército. A sequência em que os acusados leem trechos do jornal é impactante e, ironicamente, dada a relação de Polanski com jornalistas, celebra a força da imprensa.
O grande embate – inclusive físico – de Picquart será com um subordinado, o major Henry (encarnado de forma impávida por Grégory Gadebois). Pressionado pelo coronel, Henry diz a frase que resume o perigo da obediência cega ao status quo:
— Se me ordenam matar um homem, eu mato. Se depois me dizem que ele não era o culpado, não tenho culpa de nada. Eu estava apenas cumprindo ordens.
O que pesa contra o diretor
- Em março de 1977, Roman Polanski, então com 43 anos, foi indiciado em Los Angeles por cinco crimes contra Samantha Gailey (hoje Gaimer), 13 anos: estupro com uso de drogas, perversão, sodomia, atos libidinosos com uma adolescente com menos de 14 anos e por fornecer drogas controladas a uma menor de idade. Em sua defesa, o cineasta se declarou inocente para todas as acusações, mas mais tarde aceitou um acordo judicial que incluía liberdade vigiada. Em fevereiro de 1978, contudo, temendo que fosse mandado para a prisão, fugiu para a Europa.
- Em novembro passado, a fotógrafa Valentine Monnier afirmou ter sido agredida e estuprada por Polanski em 1975, na Suíça, quando tinha 18 anos. Ao declarar que se lembra dela "vagamente", o diretor acrescentou que "evidentemente não guarda na memória o que ela conta, pois é falso".
- Em 2010, a atriz britânica Charlotte Lewis o acusou de "abusar sexualmente" dela aos 16 anos em 1983. Uma segunda mulher o acusou, em 2017, de uma agressão sexual em 1973, quando ela tinha 16 anos, e uma terceira apresentou queixa em 2017 por estupro, por fatos que datam de 1972, quando ela tinha 15 anos.