Com O Corpo (2015), o porto-alegrense Lucas Cassales recebeu o Kikito de melhor curta-metragem no Festival de Cinema de Gramado, onde sua obra também conquistou o troféu de fotografia (assinada por Arno Schuh) e quatro prêmios da Mostra Gaúcha.
Seu primeiro longa, Disforia, em cartaz a partir desta quinta-feira (12) nos cinemas, bem que poderia se chamar A Mente. Não apenas porque é um terror psicológico que explora traumas e tormentos, mas também porque, para entender a história, o espectador terá de botar sua cabeça para trabalhar.
Escrito por Cassales e Thiago Wodarski, Disforia guarda semelhanças estéticas com O Corpo. Com o mesmo diretor de fotografia, aposta na luz melancólica das estações frias no Rio Grande do Sul. Lança um olhar para como as crianças percebem o mundo dos adultos e estende os ouvidos para a natureza e o ruído das coisas cotidianas – o som é essencial para estabelecer a atmosfera de estranhamento dos dois filmes. Enquanto o menino de O Corpo acompanha a revelação de rituais que desmascaram seus pais, a menina de Disforia testemunha o conflito do personagem principal com fantasmas que ele próprio pode ter mascarado.
Esse personagem é Dário, um psicólogo infantil interpretado por Rafael Sieg (visto em filmes como A Última Estrada da Praia e Ainda Orangotangos e em seriados como Surtadas na Yoga e Perrengue). Algo nos sugere – pois quase nada é dito com todas as letras – que ele vivenciou uma experiência traumática. Ao voltar a atender, sua primeira paciente, por indicação da (colega? amiga? amante?) Tânia (Janaína Kremer), é Sofia (Isabella Lima), uma guria que, na abertura do filme, fixa o olhar em um espelho que depois surge espatifado, assustando sua família.
Sofia também vai perturbar Dário. Com um simples toque de mão, desperta no psicólogo a imagem de uma banheira cheia de sangue. Será uma alucinação? Uma lembrança? Um fenômeno sobrenatural? Uma premonição? O título é chave para o entendimento da trama: disforia é um distúrbio de humor caracterizado por desânimo, tristeza, irritabilidade e dificuldade nos relacionamentos interpessoais. O mal-estar psíquico pode durar semanas, meses ou até anos. Gatilhos que ativam lembranças de um episódio aterrador são capazes de provocar intensa reações emocionais e mesmo físicas – como os tremores de Dário.
A jornada interior do protagonista se faz acompanhar por uma jornada exterior: Dário circula por uma série de paisagens de Porto Alegre, como a região do Beira-Rio e da Fundação Iberê Camargo, na Zona Sul, a Praça da Matriz, no Centro, o Araújo Vianna e o parquinho de diversões da Redenção. Também passa por monumentos vivos do cinema e do teatro da Capital, Roberto Oliveira e Ida Celina, em papéis coadjuvantes.
À medida que o psicólogo interage com outros personagens – uma mulher internada em um hospital psiquiátrico (Juliana Volkmer), o reticente pai de Sofia (Vinicius Ferreira) –, Lucas Cassales vai lançando e embaralhando mais peças de seu quebra-cabeças. Habilidoso em usar elipses e evitar redundâncias, o diretor pode ter escondido demais a solução de seus mistérios. Requer do espectador, ao final da sessão, uma espécie de terapia em grupo: na conversa com os amigos, cada um trazendo os detalhes que pescou, monta-se o quadro – se não completo, perto disso. Porque há perguntas que Disforia deixa propositadamente em aberto. Afinal, a mente e a memória são plenas de enigmas.
3 perguntas para Lucas Cassales
Porto-alegrense de 37 anos, formado em Produção Audiovisual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) em 2010 e realizador dos curtas Sebo (2009), Sofá Verde (2010, em parceria com Arno Schuh ), Abismo (2013) e O Corpo (2015), Lucas Cassales conversou por telefone sobre seu primeiro longa-metragem, Disforia:
Quais foram as inspirações, temática e estética, para Disforia?
Eu era muito aficionado por terror explícito, que nem é o que consumo mais. Tinha adoração pelos Cenobitas, as criaturas sadomasoquistas de Hellraiser (filme inglês de 1987 dirigido por Clive Barker). Daí descobri (Alfred) Hitchcock, que, a despeito do clichê, tornou-se o diretor em que mais penso, por mostrar como colocar uma câmera, como sugerir sem mostrar. Disforia começou a nascer em 2014, quando me encontrei com o Thiago Duarte (coautor do roteiro). Ele tinha os gostos parecidos comigo, mas curtia mais o terror gore, e eu já vinha em um processo de trabalhar o onírico e o sensorial, sem dar tanta atenção ao concreto da trama. Nesse meio tempo, houve uma oxigenação do terror, com o entrelaçamento de gêneros e o chamado pós-terror. Acho que o Disforia se insere nessa vertente, pois não tem jump scare, não tem susto. Sempre quisemos que o filme fosse para um outro lado, o da construção de tensão, o de um terror sensorial. Em 2015, comecei a entender o tema, que era a internalização da culpa e como os traumas se enraízam dentro da gente, a impossibilidade de se comunicar, de pedir ajuda, de explicitar as nossas fragilidades.
O filme reveste de estranhamento alguns cenários característicos de Porto Alegre, como a Praça da Matriz, no Centro, e o parquinho de diversões da Redenção. Nossa cidade é uma cidade estranha?
Na época da faculdade, eu até negava filmar a cidade. Sempre buscávamos filmar fora dos lugares mais centrais. Íamos para o Quarto Distrito, que tem cenários meio pós-apocalípticos. Porto Alegre é uma cidade aconchegante para mim, não tenho como fugir da memória afetiva de ter sido criado aqui. Mas convivemos com essa questão de ser gaúcho, e de ser porto-alegrense, o que às vezes é contrastante. Há ainda temas que outros abordaram melhor do que eu, como o provincianismo e a insegurança em relação a nosso papel no país, pelo fato de estarmos distantes de Rio e São Paulo e mais próximos de Argentina e Uruguai. Além disso, no atual contexto político, toda metrópole brasileira está estranha.
Você não entrega de bandeja as soluções para os mistérios apresentados. Disforia exige que o espectador pense, junte dois mais dois menos um, digamos. Reconhece que seu filme pode ser considerado "difícil" para uma parcela do público?
Sempre tive a preocupação de não exagerar em termos de exposição, porque odeio quando isso acontece quando estou vendo um filme. Durante as filmagens, muitos diálogos eu ia cortando, diminuindo cada vez mais o que era dito e deixando que o não dito ocupasse mais a tela. Cada filme já é do espectador. No caso específico de Disforia, é um filme que dá mais possibilidades de ser lido. Mas requer a imersão de uma sala de cinema, a entrega, a cumplicidade. Acho isso muito rico para a relação que se estabelece entre a obra e o público. Percebi, nas sessões em festivais e na pré-estreia que fizemos em São Paulo, que o filme instiga um debate. É um dos papéis da arte, né? Promover o encontro e a troca.