A chuva incessante contribuía para a atmosfera de mistério que circundava a Casa de Cinema na noite da semana passada em que ZH visitou o set de filmagens de Disforia, primeiro longa-metragem de Lucas Cassales, uma das novas vozes do cinema gaúcho.
Aos 35 anos, Cassales vem de destacada carreira no curta. Com O Corpo, venceu a mostra nacional do Festival de Gramado de 2015. Entre outros prêmios, o curta foi escolhido naquele ano um dos cinco melhores no formato pela Associação Brasileira dos Críticos de Cinema (Abraccine). O diretor recebeu a reportagem no camarim, enquanto uma das salas de reuniões da produtora transformava-se em consultório psicoterápico para uma cena diurna, graças à iluminação do diretor de fotografia Arno Schuh – sócio de Cassales na produtora Sofá Verde Filmes, junto com Alice Castiel e Henrique Schaefer.
– Desde a faculdade, era o clima sensorial bizarro que tomava conta dos meus filmes. O primeiro curta que eu dirigi depois de formado também era assim, depois, em O Corpo, também foi um pouco esse clima. É muito uma coisa de construção de climas que eu gosto de trabalhar, tanto com o pessoal da fotografia quanto com o do som – explica Cassales.
No cenário recém-montado para o penúltimo dia de filmagens, o ator Rafael Sieg deu vida ao protagonista da trama, Dário, psicólogo que, ainda carregando o trauma da morte da filha recém-nascida, começa a atender a pequena Sofia. Vivida pela atriz Isabella Lima, a menina possui algo que foge do normal, provocando sensações estranhas nas pessoas. Segundo o diretor, que escreveu o roteiro com Thiago Duarte, trata-se de um drama/suspense psicológico centrado na culpa e em como ela se reflete na ação dos personagens.
– Quando a gente teve essa ideia, partimos de uma coisa bem mais marcada de gênero, bem (David) Cronenberg. Depois fomos desconstruindo isso, porque o Thiago é bem mais do terror e eu gosto de deixar um meio-termo. Você não vai ver o filme e esperar tomar uns sustos subindo a trilha sonora. A gente tem uma construção mais sensorial, de filmes de suspense clássico do que de suspense/terror – explica. – Em O Corpo, o pessoal falava que eu meio que negava o gênero um pouco, mas é porque eu não via como um filme de gênero em si. Via como um drama com elementos de suspense, do sobrenatural, do cinema fantástico. Disforia é um pouco assim também, até mais pesado na questão do drama do que O Corpo.
Produzido pela Sofá Verde em parceria com a Epifania Filmes, Disforia tem estreia prevista para o segundo semestre de 2019.
Orçamento apertado e ambiente instável
Definida como uma alteração súbita de humor que pode levar a tristeza, angústia, ansiedade, irritabilidade e pessimismo acentuado, a palavra escolhida por Cassales para batizar seu primeiro longa poderia ser utilizada para descrever a situação da produção audiovisual do país depois de 1990, ano em que o governo Collor extinguiu a Embrafilme, empresa responsável pelo fomento e pela circulação do cinema brasileiro.
Desde a chamada Retomada, porém, o Rio Grande do Sul manteve-se na linha de frente do mercado que movimenta, a cada ano, mais de R$ 20 bilhões na economia em atividades relacionadas a cinema, televisão aberta e paga, mercado de home video e plataformas digitais, de acordo com dados do IBGE. Em 2018, já estrearam no circuito comercial oito longas gaúchos. Dezenas de outros estão finalizados circulando por festivais, aguardando espaço no circuito ou mirando outras plataformas de lançamento. Destes, dois foram dirigidos por alunos frutos da safra de 2007 do curso de Produção Audiovisual da PUCRS: Disforia e Tinta Bruta, de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, que conquistou dois prêmios no Festival de Berlim, em fevereiro.
– Nos formamos poucos, mas sobrevivemos – brinca Cassales.
Tal sobrevivência no cinema gaúcho contemporâneo deve-se, em parte, ao Edital Arranjos Regionais FAC/FSA 2015, que, além de ter contemplado o longa Rifle, de Davi Pretto, também garantiu os R$ 500 mil necessários à realização de Disforia, filmado em 20 diárias e com orçamento "apertadíssimo".
– Este é talvez um dos melhores momentos (da produção audiovisual). Já foi muito pior. Fazia 10 anos que não tinha nenhum edital de longa no Estado. Quando surgiu esse, tinha um horizonte de que pudesse dar uma certa estabilidade para manter esse investimento. Mas é sempre muito instável, é uma luta ano após ano. Teve dois longas que ganharam esse mesmo tipo de parceria, mas estão lutando para conseguir a grana porque paralisou geral. É um reflexo dos governos que a gente tem tido nos últimos anos – desabafa Cassales.
Para o próximo ano, o foco de Cassales é a gravação de Via Pública, minissérie derivada de um projeto multiplataforma sobre ciclistas da Capital que será exibida no canal Prime Box Brazil – também realizada com financiamento de editais estaduais.
– E tem projetos de longas que a gente está sempre trabalhando, porque nessa profissão temos que estar sempre aqui e no futuro, porque as coisas demoram muito para acontecer – diz o diretor.