Werner Herzog poderia estar conformado com glórias passadas, e são muitas. Apenas pelo que fez nos anos 1970 e 1980, em filmes como Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972), O Enigma de Kaspar Hauser (1974), Nosferatu: O Vampiro da Noite (1979) e Fitzcarraldo (1982), teria lugar assegurado na história do cinema, mas, aos 77 anos, o alemão garantiu para si uma independência radical que permite que faça os filmes que quer, da forma que quer, apresentando surpresas a cada novo projeto. Um grande realizador de dramas e obras épicas sobre a luta do homem com o ambiente hostil, seja a selva ou a cidade, Herzog tem aproveitado as amplas possibilidades abertas pelas revoluções tecnológicas do cinema, como o 3D, o vídeo digital e, agora, as plataformas de streaming. Sua obra recente inclui documentários de um artista inquieto cuja curiosidade o leva a desbravar temas novos a cada vez. E ele tem opiniões fortes sobre o cinema, além de não se ligar a tendências. De passagem por Porto Alegre para fazer a antepenúltima conferência do ano no ciclo Fronteiras do Pensamento em 2019, concedeu a seguinte entrevista a GaúchaZH.
O senhor se consagrou com filmes épicos realizados em situações difíceis. Hoje, quando começa um filme, considera mais fácil fazê-lo?
Sim. Porque os instrumentos para fazer filmes hoje são mais flexíveis e baratos. Você pode trabalhar de um minuto para o outro. Com as películas de 35mm, você tinha de comprar estoque de filme virgem e sabia que, quando ligasse a câmera, estaria gastando US$ 5 por cada segundo rodado, contando o filme virgem, laboratório, desenvolvimento, pré-edição, pós-produção. Hoje, você pode fazer um filme para o cinema com um celular. Vi recentemente um longa muito bom chamado Tangerine (dirigido por Sean Baker), que estreou no cinema e foi gravado com um telefone. E era um filme propriamente dito, não uma filmagem amadora.
Isso tornou mais fácil a estreia de cineastas iniciantes?
De certa forma, sim, porque qualquer um pode fazer um filme hoje, o que é maravilhoso. E o panorama não mudou apenas para a produção, e sim para a distribuição. Você pode fazer um filme e colocá-lo no YouTube, por exemplo, e ter cem milhões de visualizações. Por isso eu continuo dizendo aos jovens cineastas que reclamam: “Oh, é difícil fazer filmes hoje em dia, os estúdios não nos dão dinheiro”. Você não precisa de dinheiro dos estúdios. Você pode fazer um documentário em longa-metragem por US$ 5 mil. O último que rodei, no Japão, chamado Family Romance, LLC, foi produzido em um formato muito profissional com câmeras muito pequenas. Fui meu próprio diretor de fotografia. Ele não me custou muito dinheiro e o financiei do meu próprio bolso. E o filme participou da seleção oficial de Cannes. Apenas dois dias depois, eu estava filmando no Brasil com a mesma câmera para um trabalho dirigido por meu filho.
Seus documentários variam bastante de temas, e seus filmes sempre são um olhar minucioso sobre um personagem em um momento de extrema crise, mostrando que a curiosidade parece um ponto importante para o senhor iniciar um trabalho. Como sente que aquilo renderá melhor como ficção ou documentário?
É a sensação de encontrar uma história que vale a pena ser contada. E ali você sabe imediatamente. Você não apenas entende a forma com a qual fará o filme como entende imediatamente que acabou de tropeçar em alguma coisa realmente grande. Digamos, por exemplo, O Homem Urso (documentário de sobre a vida e a morte do ambientalista Timothy Treadwel, que passava longos períodos vivendo com os ursos em seu ambiente natural). Quando fiquei sabendo da história, sabia que seria algo tão grande que precisaria largar tudo o que estivesse fazendo e realizar o filme. É uma história a ser contada.
Não restou muito do cinema alemão. você tem alguns poucos bons diretores, cineastas isolados que são bons, e nada realmente grande. a maior parte do cinema alemão caiu no sono, está adormecida.
O senhor já disse, em outra entrevista a Zero Hora, que, quando fala com jovens aspirantes a cineastas, não os aconselha a ver filmes, mas a ler livros. O senhor se considera mais escritor do que diretor?
Escritor não. Poeta sim. Sou um poeta escrevendo e um poeta ao fazer cinema. São formas diferentes. Seus vizinhos, por exemplo, Argentina e Chile, estão descobrindo com entusiasmo meus livros, eles têm vendido muito por lá. Estive recentemente em Santiago para falar de literatura, não de filmes.
E o senhor já teve contato de alguma editora no Brasil?
Conquista do Inútil teve uma tradução aqui (pela editora Martins Fontes, em 2013). Caminhando no Gelo também (pela Paz e Terra, nos anos 1980, reeditada em 2005). Mas os outros, eu teria de me certificar, não acho que tenha sido plenamente descoberto por aqui (risos). Mas isso não importa. Só aponto que eu tenho atividades que fogem do campo da direção cinematográfica. Tenho feito papeis como ator, também...
Sim, o senhor estará na série The Mandalorian, do universo de Star Wars. Como foi levado a essa produção?
Eu não fui levado, fui arrastado (risos). Fui convidado pela pessoa que está por trás de todo o projeto, Jon Favreau (ator e diretor, responsável pelo primeiro filme do Homem de Ferro, em 2008). Ele queria muito que eu estivesse na produção. Por duas razões. A primeira é que ele sabia que eu poderia fazer o papel, já que também atuei como um vilão em Jack Reacher, e eu sou muito bom como vilão, sei como despertar terror (risos). A segunda: ele se disse um fã do meu trabalho e queria alguém no papel que pudesse apontar para além do personagem que interpreta.
O senhor se diverte fazendo essas coisas que fogem do que o público esperaria do senhor?
Não tem a ver com o público. Eu simplesmente gosto de interpretar esses papéis. Não ligo para as expectativas, aproveito porque gosto, como gosto de praticamente tudo relacionado a cinema. Gosto também de ser o meu próprio diretor de fotografia, de escrever roteiros, dirigir, atuar, montar. Amo tudo relacionado ao cinema.
Em um de seus filmes mais recentes, Eis os Delírios do Mundo Conectado (2016), o senhor elegeu como tema a internet, um aspecto amplo e impactantes da vida contemporânea, que inclusive poderia render mais do que vemos no filme. O que o levou a esse recorte? O senhor pensa em voltar a esse assunto?
Não, não penso. No meu caso particular, eu fiz o que considero um documentário com um novo olhar sobre a história da internet: o que ela faz aos seres humanos. Acho que outros filmes são sobre a evolução técnica. Para além do aspecto tecnológico, o que eu queria registrar ali é o que essa internet faz ao coração humano, à solidão humana. O que ela faz a uma garota adolescente que manda 2 mil mensagens de texto por dia. O que isso provoca nela?
O senhor costuma ser definido como um dos cineastas que melhor abordam os conflitos do homem diante da natureza imponente e imprevisível. O senhor concorda com isso?
Veja, eu fiz mais de 70 filmes, e um proeminente número dos meus trabalhos é, de fato, um olhar para o homem na natureza. Mas há também um bom número de meus filmes que não são no ambiente natural, como Family Romance, LLC e, entre outros, Vício Frenético (2009), que se passa em Nova Orleans e no qual provavelmente não se vê uma única árvore.
Em Vício Frenético, o senhor retomou uma produção anterior de um colega de ofício também aclamado (o filme homônimo de Abel Ferrara, de 1992). Como foi essa experiência?
Foi o resultado de uma conspiração mútua. Nicholas Cage não faria o protagonista se eu não fosse o diretor e eu disse que não filmaria se ele não fosse o personagem principal. Nós queríamos muito trabalhar um com o outro. Confiávamos um no outro.
(As queimadas na Amazônia) Por uma perspectiva global, são catastróficas. Mas há uma segunda perspectiva, histórica. Por que nós, europeus e norte-americanos, fazemos um barulho tão grande quando nós queimamos nossas florestas há muito tempo?
O senhor sempre transitou entre documentário e ficção. Mas seus projetos mais recentes indicam um caminho através do viés mais documentário. O senhor ainda se interessa pela direção de atores ou por trabalhos de ficção?
Claro que sim. Nicholas Cage é um exemplo. Se você pegar todos os filmes que ele fez, incluindo o que lhe deu o Oscar (Despedida em Las Vegas, de 1995), ele está melhor no meu filme do que em qualquer um dos outros – é ele mesmo quem diz isso. Qualquer um dos atores com quem trabalhei deram as melhores performances de suas vidas nos meus filmes. Klaus Kinski, Claudia Cardinale... Se bem que Claudia Cardinale esteve muito bem em outros filmes. Mas eles estão em seu melhor momento comigo.
E qual o segredo disso?
Sou competente e bom no que faço.
O senhor fez um dos filmes que melhor utilizaram o 3D, A Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010). Como vê o uso desse suporte desde que James Cameron o elevou a um novo nível com Avatar (2009)?
O 3D é uma tecnologia que não me interessa mais. Naquele filme em particular, quando você o assiste, percebe que o 3D ali era obrigatório devido ao tema, a caverna e suas pinturas. Embora, sejamos honestos, o filme funcione também quando visto em 2D. O 3D não não é uma novidade. Já existia no século 20, e já havia fotografias em 3D no fim do século 19. Hoje, nessa nova onda, vemos muitos filmes de ação e grandes produções de fantasia, que não são o tipo de cinema que eu normalmente gostaria de fazer. Pessoalmente, não busco o 3D para uma experiência profunda. Me distrai.
O cinema alemão tende a ser dividido pela crítica em algumas fases centrais: o movimento expressionista nas décadas de 1920 e 1930, o ressurgimento na década de 1960, com a geração do senhor, de Wenders, Schlöndorff e Fassbinder, entre outros. Como vê o cinema alemão no século 21, especialmente à luz de temas contemporâneos, como a globalização e a questão dos imigrantes, abordados por nomes como Fatih Akim?
Não restou muito do cinema alemão. Você tem alguns poucos bons diretores, cineastas isolados que são bons, e nada realmente grande. A maior parte do cinema alemão caiu no sono, está adormecida.
O senhor apontaria um motivo para isso?
Não. Mas não assisto a muitos filmes alemães. Vi só dois em 20 anos. Não vejo muitos filmes, só uns três ou quatro por ano – menos do que qualquer frequentador de cinema.
O senhor foi anunciado como diretor de Fordlândia, sobre a tentativa de Henry Ford de criar uma cidade americana no meio da selva. já está trabalhando nessa produção?
Está em um estágio muito inicial e não sabemos se vamos prosseguir. Não é uma produção minha, eu fui convidado (pela produtora Hyde Park Entertainment) para dirigir a minissérie. Parece muito bom, mas há procedimentos lentos que devem ser finalizados antes de sequer entrarmos em pré-produção. Não sabemos se entrará em produção algum dia.
O senhor é um visitante constante não apenas do Brasil, mas já esteve muitas vezes na Amazônia. Como tem visto as recentes notícias sobre o aumento das queimadas?
Vejo sob duas perspectivas diferentes. Por uma perspectiva global é catastrófico. Mas há uma segunda perspectiva, histórica. Por que nós, como europeus e norte-americanos, fazemos um barulho tão grande a respeito disso quando nós queimamos nossas florestas há muito tempo? Na Idade Média, a maior parte da Europa ocidental era de florestas, destruídas para criar pastagens para o gado e campos para a produção agrícola. Nós fizemos a mesma coisa, por uma perspectiva histórica, e por isso consigo entender que algumas vozes no Brasil digam: “Qual o direito de europeus ou nova-iorquinos gritarem tanto sobre isso?”.
O senhor já declarou que um dos grandes problemas ambientais hoje é que nossa sociedade baseada no consumo não é sustentável. há alguma mudança no horizonte?
Tende a ocorrer. É escandaloso, é um ultraje que a civilização ocidental como os Estados Unidos ou as nações europeias, ou outras civilizações, como o Japão, joguem fora 40% de sua comida. É um ultraje. Reduzindo nosso consumo, teremos um impacto gigantesco no ambiente. Para apenas um quilo de carne, imagine o impacto de quanto pasto você precisa, quanta água, quanto trabalho no matadouro e no transporte até o supermercado para vendê-lo embalado em plástico. E aí, jogamos fora 40% disso. Se você começar a organizar bem sua geladeira para não jogar comida fora, já estará fazendo algo importante. Se todos os que tivessem carros reduzissem seu tempo dirigindo. Se você pensar de modo mais estratégico em como usar seu carro, você pode facilmente reduzir a necessidade dele em 20%, o que faz muita diferença.
Como isso pode se contrapor a políticas que vão em sentido contrário?
Não é preciso esperar pelos políticos. O mundo político é incapaz de entrar em acordos. Foi feito um acordo climático, mas a China não está nele, os Estados Unidos idem. Nós temos de ser a política. Acho que os jovens que protestam contra o aquecimento global estão certos, mas eles precisam começar pela própria casa, pela própria geladeira. Outro problema é que há gente demais no planeta. A explosão populacional é o mais profundo dos nossos problemas.
Cannes foi o único festival que teve um banimento oficial aos filmes da Netflix. E duvido que eles consigam insistir nisso por muito tempo. Talvez eles resistam, mas a experiência de ver cinema mudou. Está se afastando das salas e migrando para o streaming. É irresistível. Está ocorrendo no mundo todo. E temos que lidar com isso. Temos de conhecer o mundo em que vivemos.
Mas há muitas nações em que a curva populacional está em queda. na própria Europa, por exemplo.
São poucos países. A China, mesmo com sua brutal política do filho único, hoje mais flexível, tem visto um aumento populacional contínuo. A Etiópia cresceu nos últimos 20 de anos de 40 milhões para 89 milhões de habitantes. É um problema.
Alguns festivais tradicionais estão sendo forçados a repensar o que veem como cinema, com a emergência do streaming. Os festivais ainda são espaços relevantes?
É diferente de 40 anos atrás quando tínhamos poucos festivais. Hoje temos mais de 4 mil. O problema é que, em um ano muito bom, da melhor safra, você ainda tem apenas uns cinco filmes realmente bons, daqueles que você pode indicar às cegas para seus amigos. É pouco filme bom para muito festival. Os festivais ainda são relevantes para o público, porque permitem a circulação de filmes de lugares distantes – Coreia do Sul, Cazaquistão, Lituânia... Isso é bonito, mas você não deve esperar muito mais do que isso dos festivais.
Como o senhor se posiciona sobre essa questão de que filme da Netflix não seria cinema?
Cannes foi o único festival que teve um banimento oficial aos filmes da Netflix. E duvido que eles consigam insistir nisso por muito tempo. Talvez eles resistam, mas a experiência de ver cinema mudou. Está se afastando das salas e migrando para o streaming. É irresistível. Está ocorrendo no mundo todo. E temos que lidar com isso. Temos de conhecer o mundo em que vivemos. Fiz um filme para a Netflix, Visita ao Inferno (2016), sobre vulcões. E fiz um filme exclusivamente para o YouTube, logo no início da plataforma. Chama-se From One Second to the Next (2013) e é talvez o meu filme mais bem-sucedido em termos de audiência. É uma produção para AT&T, Sprint Mobile e Verizon sobre celulares. Porque o índice de acidentes com pessoas que enviam mensagens de texto enquanto dirigem cresceu de modo tão radical que é mais perigoso do que dirigir bêbado. Sempre tive muito claro que era uma produção exclusiva para o YouTube e nada mais. Teve milhões de visualizações logo no lançamento. Hoje, 14 mil escolas dos Estados Unidos tornaram sua exibição obrigatória em cursos para obtenção da carteira de motorista. Tem 30 minutos, mas quem ver esse filme nunca mais vai dirigir e trocar mensagens ao mesmo tempo. Decidi fazê-lo de um modo que ninguém mais o esqueceria.
Muitos cineastas são conhecidos não apenas por seu trabalho, mas por uma imagem construída sobre sua personalidade. Como a energia maníaca de Tarantino ou a neurose de Woody Allen – quando Allen era uma figura menos controversa do que hoje. Com o senhor algo semelhante acontece: há uma certa aura de personagem “maior do que a vida”. Até há um vídeo que mostra que o senhor tomou um tiro (de uma espingarda de pressão) durante uma entrevista à BBC, em 2006, e ficou tranquilo com a situação.
Bom, não sou eu que faço a minha imagem pública, não tenho controle sobre ela. E ela tem mudado, cada década tem uma nova perspectiva, então não me importo muito com isso. Mas, veja, se estou aqui falando com você e, do nada, uma bala atravessa o vidro e o atinge na barriga, você pensa em como ficaria em público? Claro que não. Eu tomei tiro e tive sorte, porque eu vestia uma jaqueta de couro, havia um catálogo dobrado no bolso, então fiquei apenas levemente ferido. Mas na hora foi uma surpresa. Todo mundo começou a fugir, mas eu senti que era um ferimento insignificante. Até disse isso ao entrevistador, mas porque foi o que pensei. O que você pode dizer é que, de certa forma, os segundos depois daquele tiro revelaram que tipo de homem eu sou.