"Ô sol, vê se não me esquece / e me ilumina / Preciso de você aqui / Ô sol, vê se enriquece / a minha melanina / Só você me faz sorrir". Os versos do cantor porto-alegrense Vitor Kley são proibidos para os personagens de Noite Adentro, um envolvente seriado belga que estreou recentemente na Netflix. A premissa é tão simples quanto mirabolante: sempre associada à vida e à energia, a luz do dia começou a matar as pessoas. Portanto, a tripulação e os passageiros de um avião precisam voar sempre em direção ao oeste, fugindo da alvorada sob o manto noturno.
Inspirado no romance de ficção científica The Old Axolotl, do escritor polonês Jacek Dukaj e desenvolvido por Jason George, um dos produtores da terceira temporada de Narcos (2017), Noite Adentro é uma das obras apocalípticas que vieram à tona justamente quando a pandemia de coronavírus colocou em xeque se não o mundo, no mínimo os governos e a sociedade. A mesma Netflix lançou em março o filme canadense O Declínio, em que um pequeno grupo de homens e mulheres vê seu treinamento para um desastre natural ou uma doença devastadora com um youtuber descambar para a tragédia quando um acidente acontece e eles são forçados a lidar com dilemas morais. Um pouco antes, estreara o drama distópico espanhol O Poço, que, em um presídio vertical, espelhou a lógica da sobrevivência egoísta e a desigualdade social escancaradas pelo vírus.
Agora há pouco, chegaram os primeiros episódios de Expresso do Amanhã, série americana baseada no filme homônimo do sul-coreano Bong Joon-ho, que por sua vez é uma adaptação de um clássico quadrinho francês dos anos 1980, O Perfuraneve. Na trama, o que restou da civilização após uma tentativa frustrada de deter o aquecimento global está confinada em um trem condenado a trilhar permanentemente – os vagões representam a divisão de classes: a elite dispõe de luxos como sauna, os mais pobres precisam fracionar a comida.
Noite Adentro é parente de Expresso do Amanhã, pois seus personagens também foram sentenciados a vagar pelos ares, talvez indefinidamente. E, embora não tão estratificado, o avião é igualmente um microcosmo. Temos homens e mulheres, cristãos e muçulmanos, militares e contrabandistas, trabalhadores braçais e influenciadores digitais, idosos e até uma criança. Entre a dúzia de personagens – todos importantes, mas não por isso imunes –, destacam-se Mathieu (Laurent Capelluto), o piloto que tenta manter o controle da situação; Sylvie (Pauline Etienne), uma jovem que recém ficou viúva e está viajando com as cinzas do namorado; Ayaz (Mehmet Kurtuluş), um turco elegante mas algo irascível; e Terenzio (Stefano Cassetti), um oficial da Otan que, logo na abertura do primeiro capítulo, sequestra um voo comercial e exige antecipar sua partida e mudar seu destino. É ele quem sabe, sem muitos detalhes, o que está acontecendo no mundo.
O cenário e o clima de mistério e suspense remetem a outros seriados aéreos, como o recente Manifest e o cultuado Lost. Com este último, há uma aproximação na estrutura dos episódios: cada um é batizado com o nome de um personagem e começa com um flashback mostrando o que ele ou ela estava fazendo antes do embarque.
Mas há uma diferença brutal em relação a Lost e Manifest: a série belga é enxuta. São apenas seis episódios na primeira temporada (o epílogo deixa gancho para pelo menos mais uma), e todos curtinhos – de 35 a 40 minutos cada. Dá para maratonar em menos de quatro horas.
Essa compressão do tempo garante, por um lado, um ritmo frenético e uma tensão constante que não nos permitem abandonar a história. Por outro, às vezes tem-se a impressão de que um personagem mudou de ideia ou de espírito muito rapidamente.
Mas não é nada que chegue a comprometer a fruição de Noite Adentro, uma série em que a cada episódio revela segredos dos tripulantes e dos passageiros, lança novos desafios a eles (desde como voar gastando o mínimo de combustível até descobrir que os alimentos também podem sofrer os efeitos nocivos do sol) e reflete questões da pandemia. Os personagens precisam encarar, como diz o mecânico Jakub, "um mundo sem as pessoas que amamos" – é um luto repentino como aquele que se abateu sobre familiares, amigos e colegas das mais de 370 mil vítimas da covid-19. Precisam sopesar os dramas pessoais com os interesses coletivos, como ocorre em todos os países afetados. Precisam de empatia e cooperação, mas também de medidas drásticas quando for necessário. Precisam fazer renúncias, mas preservando o que nos torna humanos. Precisam olhar para o horizonte, mas também empregar o bordão que Sylvie ensina a Mathieu: "Um problema de cada vez".