Neste ano em que muitos dos principais lançamentos cinematográficos – como Mulan, Viúva Negra, Mulher Maravilha 1984 e Tenet – foram adiados por causa do coronavírus, a gente tem de agradecer a existência de eventos como o Fantaspoa. Justamente porque sua programação, que vai até domingo (2), nos mostra que um outro cinema é possível. Aliás, é um dos poucos cinemas possíveis no momento, e de graça, na internet – basta se cadastrar em app.darkflix.com.br.
Enquanto os filmes citados são candidatos em potencial a campeões de bilheteria, os títulos do Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre primeiro precisam lutar para conseguir estrear. Afinal, seus diretores e roteiristas fogem muito do convencional, do formulaico, da embalagem pronta para consumo universal.
O Fantaspoa não é para todos os gostos. Mas o meu papel, como colunista de cinema, é insistir para que mais gente assista aos filmes que estão me desafiando e me deleitando nos últimos dias. E que já estão me dando saudade. Pois sabe-se lá quando vamos ser expostos a um longa-metragem como o americano Butt Boy (2019).
Dirigido e coescrito por Tyler Cornack, o filme é sobre um cara com esposa, filho e trabalho, Chip Gutchel (interpretado pelo próprio realizador), que descobre prazer e alívio para suas angústias ao engolir, pelo ânus, coisas como um controle remoto ou um cachorrinho. Sim, isso mesmo, até um cachorrinho. E quando falo em engolir, é isso mesmo também: essas coisas somem.
Mais não conto para não estragar a surpresa. Só digo que, apesar da premissa escatológica, você vai encontrar bastante sensibilidade neste estudo sobre compulsão e solidão, e que também mistura um pouco de comédia com um pouco de policial a partir da entrada em cena de um detetive, Russell Fox (Tyler Rice), que passa a frequentar as mesmas reuniões de A.A. em que Chip escamoteia seu vício.
Tão inesperado quanto Butt Boy é o iraniano Uma História Cabeluda (2019), de Amir Homayoun Ghanizadeh. A história começa como se fosse uma comédia – a propósito, desfazendo estereótipos que ainda possam existir sobre a produção cinematográfica do país asiático, seus cinco minutos iniciais devem ter mais cortes do que cinco filmes "padrão" de lá.
Em uma barbearia, três homens passam os dias repetindo suas rotinas, seus tiques, suas manias e seus sonhos. Danesh (encarnado por Saber Abar) é o protagonista, um ator que já está há 15 anos trabalhando como cabeleireiro e que nos conta sobre o cotidiano ao lado do patrão, Kazem Khan (Ali Nassirian), um devoto do filme Casablanca, e Shapour (Babak Hamidian), sempre à procura de um fio de cabelo nas latas de atum que devora. De repente, aparecem elementos políticos e policiais na trama, e se embaralham a realidade encenada e a imaginação de Danesh – alguém que, aparentemente, sempre teve de fingir (por causa da repressão pelo Estado), e que por isso se refugiou na fantasia do cinema. Um cinema que, talvez em uma alusão à censura governamental, chegou torto ao país (em exemplos de momentos cômicos, Kazem Khan recita diálogos de Casablanca que não existem no clássico de Hollywood, e Touro Indomável, de Scorsese, é atribuído a Tarantino).
Caso você prefira um filme mais concreto, então a dica é o argentino Pedra, Papel e Tesoura (2019), de Macarena García Lenzi e Martín Blousson – aliás, o país vizinho mandou muito bem neste Fantaspoa: vieram de lá também Tóxico e Zumbis no Canavial: O Documentário. Este filme é um suspense sobre dois irmãos adultos – Jesús (Pablo Sigal) e Maria José (Valeria Giorcelli) – que, após a morte do pai, recebem a visita da meia-irmã, Magdalena (Agustina Cerviño).
Se esses nomes não são suficientes para despertar sua curiosidade, dou mais alguns atrativos: a trama toda se passa dentro da grande casa onde moram. Maria José é vidrada em O Mágico de Oz. Jesús faz filmes caseiros com efeitos especiais de gosto duvidoso. Magdalena veio da Espanha interessada numa suposta herança. Há um porquinho-da-índia – que, no conflito fraternal, tem um papel maior do que o seu tamanho sugere.
Esses são apenas três dos muitos destaques do Fantaspoa. Sério: ficou impossível, entre os 47 longas-metragens em exibição, limitar a 10 a lista de imperdíveis. Somam-se ao trio acima, por exemplo, os surreais Aviva e A Noiva de Berlim, ou os intensos Barry Fritado e O Bando, ou os surpreendentes Zumbis no Canavial: O Documentário e Ausente... Enfim: não faltam filmes fora do lugar-comum para ver até domingo. Depois, podemos voltar à programação normal. Só que vai ser difícil se reacostumar com narrativas mais comportadas. O diferente expande o horizonte e sobe a régua.