O ano de 1984 não foi tão orwelliano quanto os últimos cinco. É uma ironia que pode explicar o crescente retorno de George Orwell às listas de obras mais populares mundo afora, com seu nome surgindo desde 2017 entre os livros mais vendidos no Brasil, por exemplo, inclusive em meio à pandemia.
No que depender da Companhia das Letras, essa máquina de sucesso deve seguir a todo vapor. Até o final deste ano, chegam às livrarias a graphic novel de 1984 (adaptada pelo artista Fido Nesti), uma edição especial de A Fazenda dos Animais (ex-Revolução dos Bichos) e versões da Penguin Companhia de ambos os títulos. Já em 2021, o objetivo é publicar Homenagem à Catalunha e O Ministério da Verdade: uma biografia de 1984, escrito pelo jornalista Dorian Lynskey.
Por que o investimento em um escritor britânico que morreu há 70 anos?
— Orwell já foi o autor do panóptico, do Big Brother. Hoje, quando a verdade é mutilada, distorcida, nós recorremos a ele — explica Emilio Fraia, editor da Companhia das Letras. — Esse tema da verdade é o coração da nossa experiência social e política em 2020. Ler Orwell é entender de forma cristalina os mecanismos do autoritarismo e de governos com inclinações fascistas. Com todo o aparato crítico, as novas edições podem nos auxiliar nesse mergulho.
Responsável pela nova graphic novel de 1984, Fraia também editou a versão em quadrinhos de A Revolução dos Bichos, do ilustrador gaúcho Odyr, e as edições especiais de 1984 e A Fazenda dos Animais. Como ele adianta, elas apresentam um aprofundamento crítico que joga uma nova luz sobre a obra de Orwell.
Nascido em 1903 em uma colônia britânica na Índia e morto em 1950 em Londres, Eric Arthur Blair — que viria a se tornar George Orwell — foi um crítico do capitalismo e pró-socialista, que usaria suas palavras para atacar diretamente o autoritarismo, o fascismo e a destruição da verdade.
Ele não estava falando de fake news, redes sociais ou da internet — que nasceria três décadas depois de sua morte. Seus pesadelos eram ligados diretamente à truculência de Stalin na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Isso levou a uma apropriação de sua obra como arma ideológica contra o socialismo, em plena Guerra Fria, em um episódio "muito orwelliano", como designa Emilio, que incluiu até a CIA e respingou no Brasil.
Revolução, não mais
— Uma leitura é sempre pautada pelo seu contexto, mas é importante que isso fique claro para o leitor — destaca Luara França, editora do selo Penguin. — Nas edições da Penguin, por exemplo, os textos de introdução tentam trazer para o leitor contemporâneo uma espécie de história do livro, porque isso é importante para que ele forme sua própria opinião durante a leitura.
O aviso é especialmente pertinente no caso de A Fazenda dos Animais, até aqui traduzido para o português brasileiro como A Revolução dos Bichos. Se o novo título causou estranhamento, a explicação deve gerar ainda mais espanto. A obra é uma alegoria bastante direta da Revolução Russa, mostrando, a partir do exemplo de animais em uma fazenda, como líderes mal-intencionados podem deturpar os ideais que levam a uma rebelião, resultando em uma simples substituição da classe exploradora.
Como narra em detalhes o professor e crítico Marcelo Pen no posfácio da edição especial da obra, Animal Farm (título original) foi apadrinhada pela CIA, que patrocinou (secretamente) a tradução do texto para mais de 30 idiomas, incluindo coreano, alemão, grego, indonésio, italiano, norueguês, vietnamita, espanhol, polonês e português. A ideia, como tudo ao redor dos anos da Guerra Fria, era desmoralizar a URSS frente ao resto do mundo.
No Brasil, a obra desembarcou pelas mãos de apoiadores do golpe militar de 1964, financiada pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, ligado ao regime. Supostamente preocupados com os efeitos da Revolução Cubana no restante do continente, eles viam o livro como uma espécie de alerta sobre os riscos de qualquer movimento revolucionário se tornar um contragolpe contra a classe trabalhadora.
Assim, o tradutor Heitor Aquino Ferreira, tenente militar que trabalharia com Costa e Silva e Ernesto Geisel, colocou no título e no livro uma “revolução” que nunca esteve presente no texto original de Orwell, além de outros desvios para provar seu ponto. E a tradução seguiu intacta pelos próximos 55 anos.
— Mais do que responder o porquê de A Revolução dos Bichos ter se tornado A Fazenda dos Animais, o que a nova edição busca é entender como Animal Farm se tornou A Revolução dos Bichos — resume Emilio.
A fortuna crítica que acompanha a edição especial de A Fazenda dos Animais ainda conta com ensaios de Edmund Wilson, Northrop Frye, Raymond Williams, Daphne Patai, Morris Dickstein, Harold Bloom e Alex Woloch.
Ilustrando um passado distópico
A Fazenda dos Animais trata dos sonhos e idealismos destruídos após uma rebelião mal-sucedida. Já 1984 mergulha desde a primeira página no pesadelo que vem depois. E é esse horizonte devastado que emerge nas páginas da adaptação em quadrinhos do livro, ilustrada pelo brasileiro Fido Nesti para a Companhia.
— No começo, foi mesmo inevitável ficar intimidado com a responsabilidade de criar a adaptação para este formato — revela o ilustrador, citando como a obra é querida por muitos leitores. Mas a recepção foi positiva: — A todo momento, venho recebendo comentários de leitores sobre como consegui traduzir em imagens o que eles tinham na cabeça, ao ler o original. É interessante ver como esse imaginário parece encontrar ecos em lugares tão distintos como Brasil, Polônia, França, Hungria, Portugal, entre outros.
Reforçando a atmosfera opressiva e o clima londrino que permeiam a obra de Orwell, a paleta cinza é a predominante na graphic novel. Isso até os momentos de rompimento, ao menos, em que o vermelho toma conta das ilustrações. Para Fido, é uma forma de representar o que se passa na cabeça de Winston, o protagonista: "um estado de espírito carregado de angústia, desespero e terror".
— Como se trata de uma visão distópica do ano de 1984, imaginado por Orwell em 1948, escolhi retratar a Oceânia sob essa ótica atrasada, onde ainda imperavam máquinas pesadas, com uma cara rudimentar, ainda que eficientes, e um horizonte tomado de chaminés e suas nuvens de fumaça negra — conta o quadrinista.
Um dos títulos mais populares da literatura distópica, 1984 narra um futuro próximo em que o Império Britânico foi transformado em um regime ditatorial, comandado com punhos de ferro pelo Grande Irmão. A figura mítica controla todos graças a um sistema de super vigilância e a institucionalização da mentira.
Mais uma vez, eram temas que o escritor levantava diretamente para atacar Stalin. A riqueza da obra, no entanto, a transformou em uma espécie de manual contra o autoritarismo. Não à toa, a primeira menção a "fatos alternativos" pela administração de Donald Trump, nos Estados Unidos, ainda em 2017, bastou para disparar as vendas de Orwell. E o cenário atual não parece se afastar do ficcional, reflete Nesti:
— Estamos vendo uma escalada de governos autoritários que cospem ódio, ideias retrógradas e realidades paralelas. Junto a isso, temos uma palpável e crescente erosão de nossa privacidade, em que o indivíduo se vê constantemente vigiado e parece se tornar cada vez menos humano, mais parecido com uma máquina, desprovido de raciocínio próprio.
Os paralelos com as palavras de Orwell são inevitáveis, conclui o ilustrador:
— O aviso foi dado há muito tempo. É preciso saber ouvir.