Como sugere o título, há duas histórias concomitantes em Mães Paralelas (Madres Paralelas, 2021), filme de Pedro Almodóvar que estreia nesta quinta-feira (3) em três cinemas de Porto Alegre — Cine Grand Café, Espaço Bourbon Country e GNC Moinhos — e entra em cartaz na Netflix no dia 18.
Concorrente ao Globo de Ouro de melhor filme internacional, o 22º longa-metragem do cineasta espanhol foi lançado na competição do Festival de Veneza, onde valeu a Penélope Cruz a merecida Copa Volpi de melhor atriz. Trata-se da sétima colaboração da estrela 47 anos com o diretor de 72, depois de Carne Trêmula (1997), Tudo Sobre Minha Mãe (1999), Volver (2006), Abraços Partidos (2009), Os Amantes Passageiros (2013) e Dor e Glória (2019).
É sua personagem, a fotógrafa Janis, na casa dos 40 anos, que abre Mães Paralelas. Ao produzir um ensaio com o antropólogo forense Arturo (Israel Elejalde), ela manifesta a ele o desejo de escavar a cova rasa onde os fascistas enterraram, no início da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), 10 homens que haviam matado. Entre as vítimas, estava o bisavô de Janis. Arturo explica que os trabalhos arqueológicos da chamada Lei da Memória Histórica foram interrompidos: o então primeiro-ministro Mariano Rajoy, do conservador Partido Popular, cortou o orçamento. Será necessário apresentar um projeto para uma fundação particular.
As conversas acabam evoluindo para uma transa — na qual as cordas hitchcockianas da trilha sonora composta por Alberto Iglesias, em sua 12ª parceria com Almodóvar, evocam mais uma atmosfera sinistra do que um clima romântico. Em uma surpreendente e bem-vinda elipse de tempo, a cena seguinte mostra Janis já na maternidade, cenário onde começa a segunda história de Mães Paralelas.
Aí surge a personagem vivida, em desempenho sem brilho, por Milena Smit, atriz do filme No Matarás (2020, disponível no Amazon Prime Video). Como Janis, a adolescente Ana ficou grávida por acidente e é mãe solteira, mas são muito diferentes suas trajetórias de vida, seus ambientes familiares e seus sentimentos sobre a gestação. De toda forma, estabelece-se um vínculo entre as duas, reforçado pela montagem alternada e simétrica dos dois partos.
As ramificações desse encontro vão sendo desvendadas aos poucos, não raro em tom de suspense, embora possam ser intuídas pelo espectador acostumado à filmografia almodovariana. Não cabe entregar o jogo ao leitor, mas pode-se dizer que a porção melodrama de Mães Paralelas reflete os conflitos da porção filme político.
O acerto de contas com o passado é recorrente na carreira do diretor, vide Má Educação (2004), Volver (2006) e Julieta (2016), entre outros títulos. Mas costumava ocorrer em um nível mais pessoal, como no semiautobiográfico Dor e Glória. Em Mães Paralelas, seu primeiro longa a abordar abertamente a Guerra Civil Espanhola, Almodóvar parece mirar uma conscientização coletiva, um alerta contra a alienação, um chamamento que transcende fronteiras (apesar das particularidades da Espanha, onde a ditadura que Francisco Franco instaurou em 1939 só foi encerrada com a morte do general, em 1975). Buscar a verdade e lidar com feridas pode ser doloroso, mas é necessário. A certa altura, a personagem de Penélope Cruz diz:
— Está na hora de saber em que país mora. Parece que tua família não explicou a verdade sobre nosso país. Há mais de 100 mil desaparecidos, enterrados por aí, em valas e perto de cemitérios. Seus netos e bisnetos querem poder desenterrar seus restos mortais para dar a eles um enterro digno, porque prometeram isso as suas mães e avós. E, até fazermos isso, a guerra não terá acabado. Você é nova, mas está na hora de saber onde estava seu pai e a família dele nessa guerra. Vai te fazer bem saber.
Após a catártica sequência final, a tela escurece para dar lugar a uma citação do jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015): "Não há história muda. Por mais que a queimem, por mais que a destruam, por mais que mintam, a história humana se nega a calar a boca".