Lançada no fim de janeiro pela Netflix, A Vizinha da Mulher na Janela prova que Hollywood recicla seu lixo. Mas não a ponto de virar artigo de luxo.
A minissérie em oito episódios foi criada por Hugh Davidson, Larry Dorf e Rachel Ramras, roteiristas da série de animação Mike Tyson Mysteries (2014-2020), da linha Adult Swim do canal Cartoon Network, e de Nobodies (2017-2018), na qual interpretaram versões ficcionais de si próprios — atores/humoristas ralando e esperando uma chance de fazerem seu nome na indústria do entretenimento enquanto seus amigos alcançam a fama e a fortuna. Na nova empreitada, as primeiras impressões são de que a pegada cômica foi mantida.
A estrela é Kristen Bell, atriz de filmes como Ressaca de Amor (2008) e Perfeita É a Mãe (2016) e do seriado The Good Place (2016-2020). Os capítulos têm de 22 a 29 minutos, duração típica de uma sitcom. O título original é The Woman in the House Across the Street from the Girl in the Window, uma salada que alude a um subgênero da literatura e do cinema: o das protagonistas solitárias, vistas em obras como A Mulher na Janela, A Garota no Trem, A Mulher na Cabine 10 e A Paciente Silenciosa, que testemunham um crime, mas são desacreditadas por causa de seus problemas de saúde mental e/ou alcoolismo. Na verdade, às vezes, elas próprias já não sabem distinguir a realidade da ilusão.
A referência mais evidente é à adaptação do diretor Joe Wright para o best-seller A Mulher na Janela, um filme desastrado tanto em cena quanto nos bastidores que a própria Netflix lançou em maio passado e que agora trata de reciclar. Como a personagem de Amy Adams, a de Kristen Bell se chama Anna. Ambas passam os dias enfurnadas em casa, de roupão e bebendo vinho, não raro misturado a remédios. O torpor e a reclusão são formas de lidar com um trauma violento e com um transtorno de ansiedade — a primeira tem agorafobia (o medo de lugares abertos), a segunda, pluviofobia (medo da chuva). Enquanto a Anna de Adams vê clássicos de suspense, a Anna de Bell lê o fictício romance policial The Woman Across the Lake.
O caráter de paródia é reforçado pela fala inicial da personagem de A Vizinha da Mulher na Janela, um monólogo interior: "Meu marido me dizia que tenho uma imaginação fértil. Que bebo demais. Que não me desapego do passado. Que faço planos e os cancelo. Que nunca uso casaco, e aí reclamo que estou com frio. Que, às vezes, falo com sotaque britânico mesmo não sendo britânica".
Como em A Mulher na Janela, a protagonista da série tem sua atenção despertada pela chegada de novos vizinhos — no caso, o viúvo bonitão Neil Coleman (o inglês Tom Riley, de The Nevers), pai da fofa menina Emma (Samsara Leela Yett). E logo a vizinha verá — ou imaginará — um assassinato.
O senso de humor é mórbido, os personagens clichês do gênero estão todos presentes, e os roteiristas se esbaldam em tirar da cartola reviravoltas e soluções absurdas. Até aí, tudo bem. Há até de se dar ponto pela ousadia no desfecho do mistério.
Mas A Vizinha da Mulher na Janela tem um tom oscilante que pode prejudicar a fruição por parte do público: ora investe na irreverência, ora parece se levar a sério. É preciso estar com o radar da ironia muito ligado, mas isso não garante recompensa.
Não é spoiler o que vem a seguir, pois descobrimos logo: Anna é traumatizada pela morte da filhinha, Elizabeth, aos oito anos. Aconteceu no chuvoso dia de visita ao trabalho do pai, o psiquiatra forense Douglas (Michael Ealy). Como se fosse a coisa mais corriqueira do mundo, ele levou a guria para uma entrevista com um presidiário chamado Mike Massacre. E acabou deixando os dois sozinhos por um instante. A série não mostra, mas podemos intuir, pelo modus operandi do assassino serial, que Elizabeth foi devorada.
É isso: mesmo que possa ser um delírio de Anna — afinal, ao que consta Douglas, que deveria estar tão ou mais arrasado, seguiu sua vida numa boa —, A Vizinha da Mulher na Janela faz piada sobre a morte de uma criança. Não se deve impor limites ao humor (embora alguns comediantes continuem apostando na ridicularização das minorias e dos grupos sociais que convivem com a exclusão e o preconceito). Mas cada espectador pode estabelecer seu próprio limite. O assassinato de uma menina de oito anos por um serial killer canibal foi barra pesada demais para que eu pudesse embarcar na proposta da série.