Um dos filmes que indiquei na homenagem ao Dia Internacional da Mulher, Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (2020) virou tema do noticiário recente sobre o Oscar. Não porque tenham subido as apostas para eventuais indicações, na próxima segunda-feira (15), do título escrito e dirigido por Eliza Hittman. Mas porque veio à tona um boicote explícito ao vencedor, no ano passado, do Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim e de um troféu pelo neorrealismo no Festival de Sundance, e que tem 99% de aprovação no agregador de críticas Rotten Tomatoes.
A cineasta norte-americana teve acesso a um e-mail enviado por um dos 9,2 mil membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, Kieth Merrill, 80 anos, ganhador do Oscar de melhor documentário por The Great American Cowboy (1973) e concorrente pelo curta Amazon (1997). No texto, o diretor e produtor diz com todas as letras que nem iria ver Never, Rarely, Sometimes, Always (que, no Brasil, está em cartaz no Now, na Apple TV, no Google Play e no YouTube): "Recebi a cópia do filme, mas como cristão, pai de oito filhos e com 39 netos, e defensor pró-vida, tenho ZERO interesse em assistir a uma mulher cruzar as fronteiras para que alguém possa matar seu filho ainda não nascido. 75 milhões de nós reconhecemos o aborto pela atrocidade que é. Não há nada de heroico em uma mãe trabalhando tanto para matar seu filho". À centenária revista Variety, Merrill acrescentou que não vê filmes de horror, ou com representação gráfica de sexo, ou com violência gratuita ou com "pautas sociais radicais".
Em um post no Instagram que depois foi deletado, Eliza, 42 anos, comentou: "Este e-mail foi um lembrete severo de que a Academia ainda é tão dolorosamente monopolizada por uma velha guarda branca e puritana. Eu me pergunto quantos outros eleitores por aí não assistirão ao filme".
Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre é um dos 366 títulos elegíveis para o Oscar, que neste ano será realizado em 25 de abril. A Academia de Hollywood informou que em algumas categorias os membros só podem votar se tiverem visto a todas as obras submetidas à apreciação, mas que isso não é obrigatório no prêmio de melhor filme, em que todos os integrantes participam. Sobre o eleitorado, a Academia vem buscando aumentar a participação de mulheres e de outras etnias que estavam subrepresentadas.
O e-mail de Kieth Merrill encontra eco na discrepância da recepção do filme junto à imprensa e ao público. No site Metacritic, a nota da crítica é 91, mas a da audiência é 0,8, com base em 1.717 avaliações. Só que, dos 45 usuários que se dispuseram a escrever comentários, há 19 notas 10 e apenas seis deram classificação inferior a 5. Pode-se especular que muitos dos detratores sequer assistiram ao filme.
Na superfície, Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre é um filme sobre uma adolescente de uma cidadezinha americana que, após descobrir estar grávida, tenta fazer um aborto. Mas a cineasta Eliza Hittman vai mais fundo: mergulha na intimidade de suas personagens para trazer à tona as violências cotidianas a que garotas como Autumn e sua prima, Skylar, são submetidas.
A denúncia é explícita, mas sem grito. A cineasta investe em silêncios e interditos, aposta na nossa intuição e na nossa imaginação para preencher lacunas. Um cuidado semelhante é estendido às imagens captadas pela diretora de fotografia francesa Hélène Louvart, a mesma de A Vida Invisível (2019), do brasileiro Karim Aïnouz. Há coisas que são mostradas, e outras que são sugeridas, sentidas. Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre trabalha no equilíbrio entre a delicadeza e a contundência.
As agressões ocorrem desde a primeira cena, uma apresentação de escola. Na vez de Autumn (a estreante Sidney Flanigan) cantar, um garoto, provavelmente seu colega de aula, a chama de "puta", em alto e bom som. No supermercado onde as primas trabalham como caixas, um tiozão assedia Skylar (Talia Ryder) ao pagar as compras. Quando as duas vão entregar o dinheiro do dia a uma espécie de gerente financeiro, têm suas mãos aprisionadas - no mínimo, para serem beijadas pelo sujeito sem rosto do outro lado da grade. Todos os personagens masculinos querem sempre algo em troca, desde o exibicionista no transporte público ao rapaz que mais tarde as duas vão encontrar, quando sua jornada em busca de um aborto seguro e secreto as levarem a Nova York.
Autumn não contou nada para sua mãe (encarnada pela cantora Sharon Van Etten), muito menos para seu pai (Ryan Eggold, da série The Blacklist), que ostensivamente se queixa do comportamento da filha mais velha — a ponto de declarar, na sala de estar, que a cachorra da família é a única que o ama. Diz isso afagando o animal, em um recado claro.
Nessas cenas familiares, transparece o apuro estético de Eliza e Hélène: Autumn está ali, mas nunca é enquadrada junto aos pais ou às irmãs. O isolamento físico traduz o isolamento psicológico. A protagonista não se sente acolhida na própria casa, sobretudo agora que tem um segredo a esconder.
A maior parte de seus diálogos é travada no esquema plano e contraplano, como a espelhar sua postura insular, defensiva. E a adolescente tem motivos para querer se proteger, como vemos na cena que explica o título do filme. "Nunca", "raramente", "às vezes" e "sempre" são as respostas a escolher em um questionário sobre sua vida sexual, aplicado por uma assistente social. Só que Eliza Hittman não está interessada em investigar o passado da personagem, esta não é uma trama de "mistério": o que importa é o presente de Autumn e seus sentimentos como uma garota de 17 anos, que, evidentemente, não comportam uma gravidez.
Sobre aborto, esse tema que, pouco a pouco, vai deixando de ser tabu e ganhando amparo da lei (vide recentes decisões na Argentina e na Coreia do Sul), a diretora mostra como uma legislação rígida acaba expondo as mulheres ao perigo. No Estado da Pensilvânia, onde Autumn mora, a interrupção da gestação só é permitida em casos específicos e mediante autorização dos pais. Assim, só resta à protagonista viajar para Nova York, enfrentar a cidade grande, confiar em desconhecidos.
Na sua aventura, as primas vão encontrar desafios, mas também uma rede de proteção: mulheres que estendem a mão e que não perguntam além do que precisam saber. É a sororidade na prática, estratégia de sobrevivência em um mundo misógino — quando, ainda no começo do filme, Skylar pergunta a Autumn "Você nunca pensou em ser um cara?", o contexto é o das cólicas menstruais, mas convém ver o quadro por inteiro. São duas adolescentes já calejadas por abordagens invasivas, abusivas. Uma ajuda a outra, como Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre destaca em uma comovedora cena que consegue, ao mesmo tempo, demonstrar força e vulnerabilidade: é quando Autumn estica os dedos para tocar na mão de Skylar, uma forma silenciosa de expressar agradecimento e empatia pelo sacrifício empreendido pela prima.