A decisão histórica do Senado argentino, que aprovou por 38 votos a 29 a interrupção da gravidez até a 14ª semana é uma vitória da sociedade civil organizada, após nove projetos apresentados ao longo dos últimos anos. Só dois deles passaram pela primeira fase, na Câmara dos Deputados, em 2018 e 2020. Há dois anos, a legalização do aborto foi barrada no Senado por diferença de sete votos. Às 4h6min desta quarta-feira, após 12 horas de discussões, a medida foi aprovada por uma margem de nove votos.
Embora seja uma batalha antiga de grupos feministas, que defendem o direito da mulher de escolher sobre seu corpo em um país extremamente polarizado e religioso (além de católicos, evangélicos cresceram muito na nação vizinha nas últimas décadas), o movimento começou a ganhar força a partir dos anos 2000. Em 2003, foi organizado em Rosário a Assembleia pelo Direito ao Aborto, que teve grande influência para impulsionar o tema em comunidades e junto a políticos, na capital, Buenos Aires. O debate foi fruto de outro fórum, iniciado em 1986 em várias cidades: o Encontro Nacional de Mulheres, que reúne a cada ano representantes de movimentos sociais, universitárias, ativistas de direitos humanos, representantes de partidos políticos de esquerda e representantes de bairros populares.
Em 2015, com a fundação do coletivo Ni Una Menos (Nem uma a menos), os movimentos ganharam força. A organização denuncia violências contra a mulher e passou a lutar pela mudança na legislação. O aborto na Argentina só é permitido em caso de estupro e de risco de morte da mãe.
Segundo o governo, entre 370 mil e 520 mil abortos clandestinos são realizados por ano no país. Em uma nação desigual, como a Argentina, isso significa que uma imensa massa de mulheres é colocada em risco e morre em razão da prática em clínicas de fundo de quintal.
A batalha dos coletivos feministas ganhou eco com a vitória do presidente kirchnerista Alberto Fernández, que havia tornado o tema uma promessa de campanha. Ironicamente, sua vice, Cristina Kirchner, que presidiu a sessão histórica do Senado entre terça e quarta-feira, não fez avançar a questão, enquanto esteve no comando da Casa Rosada. Ela mesma admite que era contra a prática, mas que mudou de opinião após conhecer a luta das mulheres - em 2018, já como senadora, ela votou a favor do projeto que acabou barrado na Casa.
Esperava-se um resultado mais apertado em 2020. Ou mesmo um empate que obrigasse Cristina a exercer seu direito de voto de minerva, como presidente do Senado. A vantagem de nove votos pró-aborto também se deve à pressão social: na terça-feira, quatro senadores mostravam-se indecisos. Desses três deles, votaram a favor da medida, uma, Silvina García Larraburu, que havia votado contra em 2018, mudou de posição.
O direito à interrupção voluntária da gravidez é uma realidade, em geral, em países do Hemisfério Norte: é legal nos EUA e no Canadá, na maioria das nações da Europa Central, na Ásia Central, na Nova Zelândia e Austrália. Na América Latina, existe em Cuba, Guiana, Guiana Francesa, Uruguai, Porto Rico e em duas regiões do México, na capital, Cidade do México e no Estado de Oaxaca. Ao todo, com a Argentina, 67 nações reconhecem esse direito.