A Argentina será a grande vitrine da vacina Sputnik V, produzida pela Rússia e observada com ceticismo por boa parte da comunidade científica internacional.
O país vizinho se tornará nesta terça-feira (29) a primeira grande nação, além da própria Rússia, a aplicar o produto em sua população - apenas Belarus, ex-república soviética e dentro da área de influência regional do Kremlin, autorizou o uso do produto, desenvolvido pelo Centro Nacional de Epidemiologia e Microbiologia Gamaleya.
Se o plano do presidente Alberto Fernández de vacinar todos argentinos até o outono se confirmar - e a vacina gerar, de fato, uma imunização em massa, comprovando-se segura -, a Sputnik V ganhará mercado em outros vizinhos, que, até agora, têm apostado na imunização da Pfizer/BioNTech (mais cara e que impõe maiores desafios logísticos devido à exigência de armazenamento a -70ºC). Fernández, que exagerou ao afirmar que a Argentina será a partir desta terça um dos 10 únicos países do mundo que já estão vacinando - na verdade, há mais de 40 -, prometeu ajudar Uruguai e Bolívia a adquirirem a Sputnik V.
Para cumprir a promessa de iniciar a imunização dos argentinos antes de 31 de dezembro, o governo pôs em marcha uma grande operação, que envolveu o envio de um Airbus 330-200 da Aerolíneas Argentinas a Moscou, em uma viagem que durou, ao todo, 40 horas, para trazer as primeiras 300 mil doses do imunizante na véspera do Natal. A fim de acelerar os trâmites de aprovação pelo órgão regulador, a Administração Nacional de Medicamentos, Alimentos e Tecnologia Médica (Anmat, o equivalente à Anvisa brasileira), a Casa Rosada despachou para a Rússia, 10 dias antes, a secretária de Saúde, Carla Vizzotti, e cinco inspetores da agência. Na capital russa, eles avaliaram a Sputnik V, conversaram com pesquisadores da Gamaleya, visitaram fábricas e laboratórios e revisaram documentos relativos aos testes - aliás, relatórios são a grande incógnita da vacina russa, uma vez que o país não divulgou os resultados dos estudos de fase 3 em revistas científicas reconhecidas pela Academia.
Esse é um dos problemas da Sputnik V, a falta de transparência do governo com relação aos resultados dos testes. O Kremlin diz que ela apresentou mais de 91,4% de eficácia, faltam detalhes a serem divulgados que possam ser avaliados por pares científicos de forma independente. Uma amostra: a Argentina comprou as 300 mil doses e as trouxe no porão do Airbus até Buenos Aires sem saber, por exemplo, quando a vacina seria aprovada pelos russos para ser usada em pessoas acima dos 60 anos - aliás, cidadãos dessa faixa etária representam um importante percentual da população e são os que mais morreram por covid-19 na Argentina (82% do total). A autorização na Rússia para a administração nessas pessoas só saiu no final de semana.
A Sputnik V tornou-se a maior aposta da Argentina - e o país latino-americano converteu-se no pivô do maior salto internacional do imunizante russo, que encontrou no governo argentino afinidade ideológica, que facilitou as negociações. Paralelamente, viu uma janela de oportunidade depois que fracassou o diálogo da Casa Rosada com os dois outros laboratórios com quem conversava. A vacina produzida por Oxford/AstraZeneca foi adiada por problemas técnicos, durante a terceira fase de testes. A Pfizer/BioNTech recuou alguns passos diante da falta de credibilidade política da Argentina, imersa em problemas econômicos e com calotes no pagamento de dívidas em seu histórico. A gigante americana chegou a exigir que o próprio presidente Fernández se envolvesse na compra, como garantia.
No rastro da Sputnik V, a Rússia ganha influência no continente, para preocupação dos Estados Unidos e com olhar desconfiado de governos de direita do continente, entre eles o do Brasil. O diretor-geral do Fundo Russo de Investimentos Diretos (RFPI), Kirill Dmitriev, já deixou claro que deseja cooperação sobre a vacina com outros países da América Latina e espera que eles levem em consideração a decisão argentina.