O que embasa a preocupação de muitos argentinos sobre a segurança da vacina Sputnik V é a falta de transparência do governo russo e dos pesquisadores do Centro Gamaleya em relação ao processo e aos resultados dos testes realizados nas fases anteriores à autorização para uso emergencial do produto contra a covid-19 na população.
É de praxe, no mundo ocidental, pesquisadores publicarem suas descobertas em revistas acadêmicas reconhecidas internacionalmente a fim de que os estudos fiquem disponíveis para escrutínio dos pares. Os descobridores da Sputnik V não fizeram isso - apenas um texto, relacionado aos resultados de fases 1 e 2, foi divulgado na The Lancet, a principal revista científica de medicina. Mas não há nada sobre a fase 3, a última e decisiva.
Ocorre que países como Rússia não operam dentro da lógica liberal de respeito às instituições e normas, segundo as quais transparência e democracia são valores também científicos. Por isso, se o governo Vladimir Putin e os criadores da Sputnik V dizem que a vacina russa tem 91,4% de eficácia, é o que basta.
O presidente argentino, Alberto Fernández, já tomou um "susto" ao fazer aterrissar o produto no aeroporto de Ezeiza, na véspera de Natal, sem que houvesse liberação russa para administração da Sputnik V em pessoas com mais de 60 anos - grupo fundamental, não apenas pela idade avançada da população no país vizinho, mas porque nessa faixa etária encontravam-se mais de 80% dos mortos por covid-19. A autorização foi dada no sábado, mas, até agora, a Casa Rosada aguarda para ler os documentos, que não chegaram de Moscou.
Outro desses relatórios técnicos já causa polêmica e ameaça ofuscar o suposto triunfo de Fernández nesta terça-feira (29), dia do início da campanha de vacinação.
Trata-se de um documento interno produzido pela Anmat (equivalente à Anvisa brasileira), com data de 23 de dezembro, que serviu de apoio para que a agência reguladora recomendasse ao Ministério da Saúde aprovar o uso da vacina russa em pessoas com mais de 60 anos. O texto é assinado por Nélida Agustina Bisio, técnica da Direción de Evaluación y Registro de Medicamentos (Derm). Em cinco páginas, ela informa a seus superiores sobre os dados de fase 3, recolhidos até meados de dezembro, que o Centro Gamaleya apresentou ao Ministério de Saúde russo - tratam-se de resultados de testes em 12.296 voluntários de 18 a 87 anos. Segundo o jornal Clarín, o texto tem três pontos importantes: o primeiro que a efetividade da vacina é superior a 91,4% e que pode chegar a 96% (isso já havia sido dito pelo Kremlin). O segundo que os dados sobre pessoas com mais de 60 anos são frágeis (isso não havia sido dito). Por isso, os técnicos responsáveis pelo relatório recomendam esperar mais dados disponíveis. O terceiro, e mais grave ponto no documento ocultado pela Rússia, é que houve 12 eventos adversos considerados "sérios", três dos quais envolvendo cidadãos acima de 60 anos que haviam recebido a dose: um caso de cólica renal, outro de trombose venosa profunda e um abscesso. Sobre análise de segurança, o documento reporta 8.704 eventos adversos leves - o mais comum, sintomas de uma gripe comum entre aqueles que receberam a vacina.
A publicação do documento pelo jornal Clarín levou autoridades a agir com cautela. Um deles é o ministro da Saúde da Província de Buenos Aires, Fernán Quirós, segundo o qual são necessárias informações técnicas antes da próxima entrega de doses da vacina - chegaram apenas 300 mil até agora.
Na manhã de terça-feira (29), o ministro da Saúde argentino, Ginés González García, afirmou que o presidente Fernández "está nervoso porque não chegam os papéis". Os "papéis" são justamente os documentos técnicos, que devem ser enviados pela Rússia, sobre a eficácia da vacina para pessoas com mais de 60 anos.
Antes mesmo da autorização russa, que saiu no sábado e da divulgação do documentos pelo Clarín, já havia um sinal de alerta, quando o presidente Vladimir Putin admitiu publicamente que a vacina não estava aprovada para quem tem mais de 60 anos, inclusive ele próprio. Putin, que tem 68, ainda não foi vacinado com o próprio imunizante que o país produziu.