Não apenas um de seus filmes menos inspirados, como já se disse à exaustão por aí, Os Amantes Passageiros talvez seja o mais surpreendente dos 19 longas de Pedro Almodóvar. Estreia do fim de semana passado no circuito, chega num momento de maturidade do cineasta, que na última década e meia vinha lapidando seus melodramas com humor mais sutil e requinte narrativo, perceptível de Carne Trêmula (1997) a Abraços Partidos (2009), de Fale com Ela (2002) a Volver (2006). O que pretendia o diretor e roteirista com esta comédia afetada e autorreferenciada, que almeja ser uma versão escrachada de O Anjo Exterminador (de Luis Buñuel, 1962) mas é inferior a Apertem os Cintos... O Piloto Sumiu! (Jim Abrahams, David e Jerry Zucker, 1980)?
Como em Pepi, Luci e Bom (1980), Almodóvar usa aqui um trio de protagonistas como centro de referência de um painel mais amplo. Javier Cámara, Carlos Aceres e Raúl Arévalo são os comissários de bordo de um voo entre Madri e a Cidade do México, que precisa fazer um pouso forçado devido a um problema técnico. A situação extrema motiva confissões dos passageiros da primeira classe, tentativa de fazer emergir do caos uma nota irônica sobre a sociedade contemporânea, espanhola em particular, em seu estrato mais alto.
Há transgressão - quando não houve em Almodóvar? Aqui, no entanto, ela está restrita a uma tentativa de desmitificação do sexo. E de inversão da lógica das comédias populares, que usualmente fazem piada sobre as minorias, aí incluídos os homossexuais. Em Os Amantes Passageiros, os três protagonistas gays - estereotipados, para deixar claro os propósitos do realizador - não são alvo dos comentários, e sim os agentes que os detonam. Geralmente, comentários estes que tiram do sexo a noção de algo elevado, raro, quase mítico, uma instituição inexoravelmente ligada à união de parceiros de gêneros opostos.
Há um ator em crise (Guillermo Toledo), uma cafetina que diz ter até o rei da Espanha em suas mãos (Cecília Roth), um belo casal em lua de mel (Miguel Ángel Silvestre e Laya Martí), dois pilotos lidando com tendências homossexuais (Antonio de la Torre e Hugo Silva). Há uma ponta de Antonio Banderas e Penélope Cruz na cena de abertura, antes do embarque. Mas o filme só funciona, de fato, na sequência surreal em que uma linda ex-namorada do ator (Blanca Suárez) fala ao telefone com ele. A imagem dela pedalando por Madri num vestido florido tem um impacto que não se repete em nenhum outro momento da trama. Essa ideia de corpo estranho é reforçada pelo fato de se tratar do único trecho em que, durante o voo, a câmera não flagra acontecimentos de dentro do avião.
Na aeronave, pouca coisa está no lugar - em todos os sentidos. O escracho das piadas e da própria composição dos personagens não serve à intenção reflexiva que está na gênese do filme. Se, ao menos, houvesse a energia de títulos como Matador (1986) e A Lei do Desejo (1987), nos quais mesmo as contradições (e os defeitos) diziam algo relevante para a construção do produto final, Os Amantes Passageiros podia ser um retorno bem-sucedido de Almodóvar às origens (vale lembrar que o pouso forçado se dá na região de Castilla-La Mancha, onde o cineasta nasceu).
Sem essa energia e perdido entre a crítica de costumes e as brincadeiras com tamanho de pinto, o projeto não decolou.
Os Amantes Passageiros
(Los Amantes Pasajeros)
De Pedro Almodóvar. Com Javier Cámara, Carlos Areces, Raúl Arévalo, Antonio de la Torre, Hugo Silva, Guillermo Toledo, Miguel Ángel Silvestre, Cecília Roth e Blanca Suárez.
Comédia, Espanha, 2013. Duração: 90 minutos. Classificação: 16 anos.
Em cartaz no Cinemark Barra 2 (12h10, 14h40, 17h05, 19h10, 21h20), no Espaço Itaú 7 (14h, 16h, 18h, 20h, 22h), no Guion Center 1 (14h30, 16h10, 17h50, 19h30, 21h10) e no GNC Moinhos 4 (14h, 16h, 18h, 20h, 21h50).
Cotação: 2 estrelas de 5.