Você Não Estava Aqui (Sorry We Missed You, 2019) é um filme de terror. Mas não há nada de sobrenatural, nada de efeitos especiais. Adicionado recentemente ao catálogo da plataforma MUBI, assusta justamente por contar uma história bastante verídica, que poderia estar acontecendo agora, em qualquer lugar do mundo capitalista em que vivemos.
Esse realismo da trama é reforçado pela escalação de atores não apenas desconhecidos, como, em sua maioria, estreantes; pela postura econômica da câmera, quase documental (por vezes, a sensação é de que estamos nos intrometendo na vida daquelas pessoas); e pelo uso parcimonioso da trilha sonora para pontuar emoções — o que chega a ser desnecessário, tamanha a força das situações enfrentadas em Newcastle, no norte da Inglaterra, pela família de Ricky Turner, personagem interpretado com gana por Kris Hitchen (que lembra Damian Lewis, das séries Band of Brothers, Homeland e Billions).
O filme foi escrito pelo indiano Paul Laverty e dirigido pelo inglês Ken Loach, hoje com 87 anos. É a mesma dupla por trás de dramas humanistas como Meu Nome É Joe (1998), Pão e Rosas (2000), Ventos da Liberdade (2006) e Eu, Daniel Blake (2016) — estes dois últimos ganharam a Palma de Ouro no Festival de Cannes.
Em Você Não Estava Aqui, Loach e Laverty retratam um monstro sem rosto, mas com vários logotipos reconhecíveis, que assola empregados e desempregados: a precarização do trabalho. Ricky é um pai de família que, depois de ter atuado na construção civil e na jardinagem, setores em que chefes durões e colegas preguiçosos o incomodavam, resolve ser patrão de si mesmo. Torna-se motorista de uma empresa que faz entregas do comércio digital, sem carteira assinada.
— Aqui você não trabalha para nós. Aqui, trabalha conosco — diz a ele o gerente Maloney (vivido com brio pelo ex-policial Ross Brewster).
É um canto de sereia. Primeiro, a uberização requer um investimento alto — para comprar a van branca na qual transportará as encomendas, Ricky vende o carro que a esposa, Abby (Debbie Honeywood, uma espécie de Emily Watson, física e espiritualmente), utilizava nos seus deslocamentos como cuidadora de idosos e doentes. Já no primeiro dia de trabalho, um colega lhe dá uma garrafa plástica vazia, anunciada como item fundamental: é nesse recipiente que Ricky, para cumprir prazos sobre-humanos, terá de urinar. O entregador não tardará a perceber o desaparecimento de qualquer traço de direitos trabalhistas: ausências geram multas, independentemente do motivo, e não há plano de saúde ou seguro. No livre mercado, os empregados não são exatamente livres.
Como se estivesse assistindo a um filme de terror do tipo falso documentário, o espectador de Você Não Estava Aqui pressente que algo vai dar muito errado, intui os perigos escondidos atrás das portas que são abertas. Maloney personifica o demônio de voz ardilosa com quem Ricky assina um pacto, aquele em que as letrinhas minúsculas estabelecem que só o que importa é a "satisfação do cliente" — um cara que, por sua vez, não raro nem dá bola para quem entrega seu pacote. (Aliás, cumprimentar, olhar nos olhos e oferecer um copo d'água não custam nada.) A tecnologia, a exemplo da abordagem de alguns títulos do gênero, surge como uma criatura de duas faces: se por um lado o cadastro em um scanner possibilita rastrear uma encomenda, por outro também transforma o condutor da van em mercadoria — um bipe dispara se ele se afastar da van por mais de dois minutos. É o homem sujeito à máquina.
Ricky, como um protagonista de filme de terror, deixa-se seduzir por uma ilusão e não enxerga seu próprio peso na desestruturação familiar: o filho adolescente, Sebastian (Rhys Stone), começa a cometer pequenos furtos e a brigar na escola; a filha de 12 anos, a doce Liza Jane (Katie Proctor), começa a urinar na cama e a precisar da companhia da mãe para dormir. São manifestações típicas de filhos que sofrem da falta dos pais — Ricky trabalha 14 horas por dia; sem carro, Abby demora-se mais no transporte coletivo e praticamente só fala com Seb e Liza via celular. Estão sempre exaustos.
Esse não é um problema exclusivo de autônomos como entregadores de lojas digitais, motoristas de aplicativos, os motoboys e os ciclistas de delivery. Como o filósofo sul-coreano Byung-chul Han batizou, estamos na sociedade do cansaço, que cobra o desempenho, a produtividade, a rapidez. Sempre demandado, sempre sobrecarregado — incluindo aí o volume de informações e de interação nas redes sociais ao que é exposto, voluntária ou involuntariamente —, o indivíduo não tem mais sossego espiritual nem tempo para elaboração. Vive na correria, afoga-se em uma rotina de afazeres e alimenta a angústia de que uma hora todo aquele esforço será recompensado. Será?