Ticiano Osório

Ticiano Osório

Jornalista formado pela UFRGS, trabalha desde 1995 no Grupo RBS. Atualmente, é editor em Zero Hora e escreve sobre cinema e seriados em GZH e no caderno ZH2.

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Opinião

A série que reconstitui a tragédia de Chernobyl

Após invasão da Ucrânia pela Rússia, antiga usina nuclear volta a preocupar o mundo

Ticiano Osório

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HBO / Divulgação
Paul Ritter (D) interpreta o engenheiro da usina nuclear Anatoly Dyatlov em "Chernobyl" (2019)

Quase 36 anos anos depois do pior acidente nuclear da história, a antiga usina de Chernobyl volta a preocupar o mundo, por conta da invasão da Ucrânia pela Rússia. Nesta sexta-feira (25), militares russos confirmaram que assumiram o controle do local. "É uma garantia de que as formações nacionalistas ou outras organizações terroristas não poderão aproveitar a situação atual do país para organizar uma provocação nuclear", afirmou Igor Konashenkov, representante oficial do Ministério da Defesa do governo de Vladimir Putin.  

Em cartaz na HBO Max, a esplêndida minissérie Chernobyl (2019) reconstitui a tragédia ocorrida entre 25 e 26 de abril de 1986 perto da cidade de Pripyat, na Ucrânia — à época, ainda uma república pertencente à União Soviética (URSS). O número de mortos é controverso até hoje, porque o cálculo envolve não apenas as vítimas diretas (bombeiros que combateram o fogo, operários que limparam os destroços, moradores próximos ao local), mas também pessoas que sofreram os efeitos da contaminação — como casos de câncer ou de bebês nascidos com malformação. Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2005 estima 4 mil mortes, a ONG ambiental Greenpeace sugere 20 vezes mais. Fato é que o desastre demandou um enorme, longo e caro esforço para conter a radiação. Pelo menos 500 mil trabalhadores foram empregados, e em 2010 o sarcófago de concreto erguido às pressas após o vazamento começou a ser coberto por outra estrutura, agora de aço e móvel, inaugurada em 2016 a um custo de 2,1 bilhões de euros financiados por vários países.

Chernobyl apresenta, ao longo de cinco episódios, cada um com mais ou menos uma hora, uma versão ficcional do acidente nuclear, de suas consequências imediatas e das primeiras ações tomadas pelo governo soviético. A obra foi um sucesso de público e de crítica. À época, com 8 milhões de visualizações, chegou a representar 52% da audiência da HBO no streaming, batendo o recorde que era do badaladíssimo Game of Thrones (46%). Tem 96% de avaliações positivas, e na principal premiação da TV estadunidense, o Emmy, arrebatou 10 troféus, incluindo melhor minissérie, direção (o sueco Johan Renck), roteiro (o estadunidense Craig Mazin), fotografia (o também sueco Jakob Ihre) e trilha sonora original (a islandesa Hildur Guðnadóttir, a mesma de Coringa e Trapped). Concorria a outros nove, entre eles melhor ator (o inglês Jared Harris, no papel do renomado químico Valery Legasov), atriz coadjuvante (a inglesa Emily Watson, como a fictícia cientista Ulana Khomyuk) e ator coadjuvante (o sueco Stellan Skarsgård, que interpretou Boris Shcherbina, vice-presidente do Conselho de Ministros da URSS de 1984 a 1989, designado para supervisionar a gestão da crise desencadeada pelo acidente nuclear).

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Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård) e Valery Legasov (Jared Harris) em "Chernobyl"

Atuando tanto in loco quanto nos bastidores, em Moscou, Legasov, Ulana e Shcherbina são alguns dos personagens com os quais a tragédia é reencenada. O elenco multifacetado permite enxergarmos as dimensões científica, política e humana. Temos, por exemplo, o ângulo do arrogante e irascível Dyatlov (Paul Ritter, morto no início de abril de 2021), engenheiro que comandou o fatídico teste na usina. Ou a visão de Lyudmila Ignatienko (Jessie Buckley, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por A Filha Perdida), a esposa grávida de um bombeiro, cuja história foi adaptada do livro-reportagem Vozes de Tchernobil, da jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 2015. E ainda o olhar do jovem militar Pavel (Barry Keoghan), recrutado para ajudar no extermínio de animais contaminados.

Embora haja liberdades artísticas que foram contestadas por autoridades e especialistas no assunto (por exemplo, o retrato de Viktor Bryukhanov, diretor da usina, e Nikolai Fomin, engenheiro-chefe, como vilões, e a queda de um helicóptero em meio à fumaça radioativa), Chernobyl se destaca pela sobriedade. As cenas são graves e tensas, como era de se esperar. O que surpreende é a sua paternidade. O criador da minissérie, Craig Mazin, hoje com 50 anos, construiu sua carreira na comédia — e geralmente escrachada. Entre seus créditos como roteirista, estão Pirado no Espaço (1997), Todo Mundo em Pânico 3 (2003), Todo Mundo em Pânico 4 (2006), Se Beber, Não Case! Parte II (2011) e Se Beber, Não Case! Parte III (2013). Em entrevistas, Mazin justificou a guinada para um tema e um tom sérios:

— Nós vivemos em uma época em que as pessoas parecem estar voltando ao conceito nocivo de que o que nós queremos que seja verdade é mais importante do que a verdade em si. É como se a verdade tivesse virado piada. Uma das lições mais importantes de Chernobyl é que a verdade não depende de nós.

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Jessie Buckley encarna Lyudmila Ignatienko, a esposa grávida de um bombeiro, em "Chernobyl"

Não bastassem a qualidade dramatúrgica e a excelência técnica, Chernobyl ganhou assustadora atualidade durante a pandemia. Cenas e falas parecem refletir o que vimos e ouvimos desde o surgimento do coronavírus.

Os esforços para acobertar o acidente nuclear remetem à situação da China, que, segundo um comitê independente formado por especialistas em saúde pública e liderado pela ex-primeira-ministra da Nova Zelândia Helen Clark e pela ex-presidente da Libéria Ellen Johnson, demorou muito para agir quando a covid-19 começou a se alastrar, em dezembro de 2019.

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Os mineiros convocados para o sacrifício em "Chernobyl"

Os habitantes de Pripyat (hoje uma cidade deserta cobiçada por turistas) que se reúnem sobre uma ponte para observar a luz azul emitida pelo incêndio no reator lembram as perigosas aglomerações.

O sacrifício dos mineiros convocados para cavar um túnel na usina se assemelha ao dos profissionais da saúde que trabalharam na linha de frente do combate à doença.

A colocação de interesses políticos acima do conhecimento científico espelha a postura de governos como os de Donald Trump nos Estados Unidos e de Jair Bolsonaro no Brasil.

O personagem de Jared Harris, Valery Legasov, que luta para fazer o presidente Mikhail Gorbachev, Boris Shcherbina e generais soviéticos entenderem a gravidade do acidente nuclear e tomarem as medidas necessárias, dá voz aos médicos e pesquisadores que combateram a disseminação da desinformação e a adoção de tratamentos ineficazes ou até danosos:

— Qual é o custo das mentiras? Não é que as confundamos com a verdade. O real perigo é ouvirmos tantas mentiras que sejamos incapazes de reconhecer a verdade. Cada mentira que dizemos aumenta a dívida com a verdade. Cedo ou tarde, essa dívida é cobrada.

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