Aftersun pode ter recebido apenas uma indicação ao Oscar de 2023 — a de ator, para Paul Mescal. Mas o filme conquistou o coração de muitos críticos: foi eleito o melhor de 2022 pelo jornal The Guardian e pela revista Sight and Sound, ambas do Reino Unido, e pelo site IndieWire, dos Estados Unidos (além de ter ficado em primeiro lugar na minha lista). E parece que também arrebatou o público: já são três meses em cartaz nos cinemas de Porto Alegre, mesmo estando disponível no streaming — na plataforma MUBI — desde o dia 6 de janeiro.
O filme estreou no cinema em 1º de dezembro, no Espaço Bourbon Country e no GNC Moinhos. No dia 15 daquele mês, passou a ser exibido também pela Sala Eduardo Hirtz, na Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ). Só saiu de cartaz do GNC Moinhos em 12 de janeiro, e se despediu do Espaço Bourbon Country somente em 16 de fevereiro. Na Eduardo Hirtz, segue firme e forte, na sessão das 17h40min, geralmente lotando os 70 lugares da sala nos finais de semana. Se continuar na programação até 10 de março, vai completar 100 dias de exibição, uma marca bastante expressiva na era da pressa e da instantaneidade.
— Realmente, Aftersun é um pequeno fenômeno. É uma história simples, com excelentes personagens e uma capacidade incrível de comunicação com as pessoas — comenta a jornalista Mônica Kanitz, coordenadora e curadora da Cinemateca Paulo Amorim, na CCMQ.
Por Aftersun, a escocesa Charlotte Wells ganhou o troféu do Sindicato dos Diretores dos EUA, o DGA, destinado a realizadores estreantes e recebeu da Academia Britânica o prêmio Bafta de cineasta, roteirista ou produtor estreante. Em pouco mais de 100 minutos, ela conta uma história com toques autobiográficos sobre a viagem de férias que um pai divorciado e sua filha de 11 anos empreenderam pela Turquia, na década de 1990, quando a Macarena ainda era coqueluche mundial.
Ele é Calum, interpretado por Paul Mescal, protagonista da minissérie Normal People (2020) e coadjuvante em A Filha Perdida (2021). Ela é Sophie, vivida pela novata Frankie Corio. Ambos estão encantadores, e a química entre os dois opera a mágica de acharmos que são pai e filha de verdade.
Há uma terceira personagem importante: a Sophie 20 anos mais velha (Celia Rowlson-Hall). Ela surge no reflexo de uma TV, assistindo às cenas do passeio gravadas por uma filmadora caseira. Sophie também é vista no que parece ser uma festa, mas a luz estroboscópica do ambiente também funciona como uma representação do quanto a perturba revisitar suas recordações. Seu olhar melancólico completa o alerta: durante aqueles dias ensolarados na Turquia, em meio aos banhos de piscina e aos mergulhos no mar, às tardes no fliperama e às noites no karaokê, às piadas internas ("Torremolinos!") e às bebidas coloridas, algo aconteceu, algo se perdeu, algo se quebrou.
Mas o quê?, pode se perguntar o espectador diante da doçura com a qual Calum trata a filha e da adoração que ela tem por ele. Aqui está o ponto: agora adulta, Sophie pode — por mais doloroso que seja — vasculhar suas memórias à procura das fissuras que não enxergamos na infância. Daí o título (estranhamente mantido em inglês no Brasil): depois do Sol, vem a noite, estão as sombras. Daí, também, que a direção de fotografia assinada por Gregory Oke e a edição realizada por Blair McClendon trabalham com texturas e buscam detalhes. Assim como Sophie, na pré-adolescência, faz um esforço silencioso para roçar o seu braço no de um menino enquanto brincam no fliperama ou espia pelo buraco da fechadura a conversa de duas garotas sobre aventuras sexuais, a montagem estende os planos ou muda o ângulo para flagrar um olhar de soslaio de Calum, um suspiro pesaroso, um silêncio revelador.
Ou nem tão revelador. Um dos trunfos de Aftersun é jamais ceder à tentação de ser explicativo em demasia. Afinal, estamos trafegando nas águas turvas da memória, que nunca é estática, está sempre em transformação, sempre em fabricação. Por um lado, Sophie é uma voyeur de sua infância, desnudando para o público um momento marcante de sua vida; por outro, ela pode estar evitando confrontar certas lembranças, nomear o indizível.
Nesse sentido, foi escolhida a dedo a canção que a guria interpreta no karaokê, Losing my Religion (1991), da banda estadunidense R.E.M., cuja letra diz assim: "Aquele sou eu no canto / Aquele sou eu sob os holofotes / Perdendo minha fé / Tentando te acompanhar / E eu não sei se eu consigo fazer isso (...) / Pensei ter ouvido você rindo / Pensei ter ouvido você cantar / Eu acho que pensei ter visto você tentar / Mas aquilo foi apenas um sonho / Aquilo foi apenas um sonho".
Ainda falando da trilha sonora, é fundamental destacar o uso de Under Pressure (1981), canção composta pela banda Queen com David Bowie. No contexto de Aftersun, seus versos se tornam ainda mais urgentes e pungentes. Eis uma cena que jamais sairá da memória.