A 10 dias do Oscar, finalmente chega aos cinemas de Porto Alegre TÁR (2022), filme que deveria dar a estatueta dourada de melhor atriz a Cate Blanchett. Seria a coroação de uma trajetória vitoriosa que começou com a Copa Volpi, no Festival de Veneza do ano passado, e inclui o Bafta (da Academia Britânica), o Critics' Choice (dos críticos de rádio, TV e internet dos EUA e do Canadá), o Globo de Ouro (da associação de imprensa estrangeira) e o troféu da criteriosa National Society of Film Critics.
Uma rara derrota aconteceu no Gotham, dedicado a obras com orçamento de até US$ 35 milhões, só que a vencedora, Danielle Deadwyler, de Till, não concorre na premiação de 12 de março. Mas o favoritismo da australiana de 53 anos sofreu um sério abalo na entrega do Screen Actors Guild Awards, no domingo (26): o Sindicato dos Atores dos EUA laureou Michelle Yeoh, de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (ela também ganhou o Globo de Ouro de atriz em comédia ou musical). Nas 28 edições anteriores do SAG, em 21 vezes houve coincidência com a escolha da Academia de Hollywood. Conseguirá Blanchett ser uma exceção e, assim, ingressar em um seletíssimo grupo de artistas? (Leia mais ao fim desta coluna.)
Em cartaz a partir desta quinta-feira (2) somente no Espaço Bourbon Country, às 17h40min e às 20h40min, TÁR estreou nacionalmente no já longínquo 26 de janeiro. Por nacionalmente, leia-se Belo Horizonte, Brasília, Recife, Rio e São Paulo. Curitiba e Salvador também viram antes de nós. Como cantavam os Engenheiros do Hawaii, estamos longe demais das capitais.
Era um dos dois candidatos ao Oscar de melhor filme ainda inéditos nas salas de Porto Alegre ou no streaming. Por coincidência, nesta quinta estreia também Entre Mulheres, drama dirigido por Sarah Polley ambientado em uma isolada comunidade religiosa, onde vítimas de abusos sexuais reúnem-se para decidir se vão embora ou se ficam para enfrentar os homens. Três dos outros oito indicados seguem em cartaz nos cinemas: Avatar: O Caminho da Água, Os Banshees de Inisherin e Triângulo da Tristeza. Campeão de indicações, com 11, e favorito por causa das premiações prévias, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo já pode ser visto no Amazon Prime Video. Elvis está disponível na HBO Max, Nada de Novo no Front, na Netflix, e Top Gun: Maverick, no Paramount+, no canal Telecine do Globoplay e no NOW. Os Fabelmans foi exibido nos cinemas e acaba de chegar às plataformas de aluguel, como Amazon Prime Video e Google Play.
Se Cate Blanchett é a estrela de TÁR, seu diretor, Todd Field, é um personagem à parte. Primeiro porque fazia 16 anos que este californiano de 59 não lançava um filme. Entre 2008 e 2019, houve rumores, notícias e até anúncios de uma série de projetos, como um sobre a Revolução Mexicana (ora com Leonardo DiCaprio, ora com Christian Bale e, por fim, com Daniel Craig), outro sobre uma liga de beisebol dos anos 1970, adaptações de pesos-pesados da literatura dos Estados Unidos, como Cormac McCarthy, Joan Didion e Jonathan Franzen, e o drama de guerra America's Last Prisoner of War, inspirado no caso real de um soldado, Bowe Bergdahl, sequestrado pelo Talibã e mantido preso de 2009 a 2014 no Afeganistão. Nada disso vingou.
O segundo motivo que joga holofotes em Field é sua invejável assiduidade no Oscar. Ele só dirigiu três longas, e todos disputaram o prêmio da Academia de Hollywood. Entre Quatro Paredes (2001) foi indicado em cinco categorias: melhor filme, roteiro adaptado (pelo próprio cineasta a partir de um conto do escritor Andre Dubus), ator (Tom Wilkinson), atriz (Sissy Spacek) e atriz coadjuvante (Marisa Tomei). Pecados Íntimos (2006) concorreu às estatuetas de atriz (Kate Winslet), ator coadjuvante (Jackie Earle Haley) e roteiro adaptado, assinado pelo diretor na companhia de Tom Perrota, autor do romance em que o filme é baseado, Criancinhas (as Little Children do título em inglês). Agora, TÁR briga por seis troféus: filme, direção, atriz, roteiro original (do próprio Todd Field), fotografia (o alemão Florian Hoffmeister) e edição (a austríaca Monika Willi, habitual colaborada de Michael Haneke).
Naturalmente, o retorno de Field geraria burburinho no âmbito cinematográfico, mas TÁR provocou uma quantidade desproporcional de conversas para um fracasso de bilheteria (custou US$ 35 milhões, somando os gastos com marketing, e arrecadou US$ 16,8 milhões). "É possível que o discurso em torno do filme seja tão interessante quanto o próprio filme", escreveu Charlotte Higgins, a redatora-chefe de Cultura do jornal britânico The Guardian, antes de resumir várias interpretações conflitantes de TÁR: "Que é uma deturpação vergonhosa do campo da música clássica; que tudo é muito real; que tudo é muito surreal; que carrega um peso intelectual que é raro no cinema; que não é tão esperto quanto pensa; que não se trata de regência, mas sim de poder; que não se trata de poder, mas sim de narcisismo; que se trata de um choque de ética entre as gerações; que é sobre o feminismo da terceira onda; que sua protagonista, em toda a sua antipatia, é arrebatadoramente complexa; que sua protagonista é irremediavelmente odiosa; que é uma anatomização fascinante da cultura do cancelamento; que na verdade é um filme retrógrado que tem um objetivo amargo na política identitária".
Pode-se acrescentar outros temas e outras queixas levantados por TÁR, como a possibilidade ou não de se separar o artista da obra, sobretudo à luz dos debates sobre diversidade de gênero e representatividade étnica; as semelhanças marcantes, nos dados biográficos, e diferenças gritantes, na conduta pessoal, entre a personagem central e a maestra Marin Alsop; e o fato de que essa protagonista é uma predadora sexual, que usa a sua posição hierárquica e seu status artístico para levar para a cama, enquanto aqui, na vida real, a grande maioria dos que se valem disso para cometer abuso são homens. "Depois", prossegue Higgins, "há um extenso debate online dedicado a decodificar seu misterioso ato final. Há algo empolgante em um filme que é tão aberto, que demanda tanta discussão".
O título toma emprestado o sobrenome da personagem encarnada por Cate Blanchett, Lydia Tár. Regente da Filarmônica de Berlim e uma das raras artistas EGOT (ganhou um Emmy, um Grammy, um Oscar e um Tony, o principal prêmio do teatro), ela é a maior estrela da música erudita contemporânea — e sabe disso: sua arrogância é um terreno vasto para Cate Blanchett desfilar seu talento dramático.
Quando a conhecemos, a protagonista está nos bastidores do New Yorker Festival, onde será entrevistada pelo crítico Adam Gopnik, interpretado pelo próprio ensaísta da revista nova-iorquina. Naqueles instantes enquanto Lydia aguarda ser chamada ao palco, a atriz australiana começa a exibir as contradições da sua personagem. Está ali a presunção, mas também se vislumbra uma insuspeitada insegurança. Estão ali a postura rigorosa e o olhar frio, mas também se percebe um pendor à impulsividade.
A maestra está lançando um novo livro, Tár on Tár, e tem o projeto de gravar a desafiadora 5ª Sinfonia de Gustav Mahler (1860-1911), completando o ciclo de um dos maiores compositores do período romântico. Antes de a conversa virar um longo monólogo sobre o papel do tempo na música, Gopnik diz que não pôde deixar de observar Lydia "se encolhendo" enquanto ele lia sua apresentação e pergunta se foi por ter esquecido alguma façanha ou se foi por ela ter autoconsciência das incríveis e variadas coisas já conquistadas.
Puro jogo de cena: um pouco antes, vimos a assistente da regente, Francesca (interpretada pela francesa Noémie Merlant, de Retrato de uma Jovem em Chamas), recitar, silenciosamente, todas as palavras que estão sendo ditas por Gopnik. Lydia Tár é uma mulher no controle absoluto de tudo e de todos, o que inclui sua esposa, Sharon (a alemã Nina Hoss, das séries Homeland e Jack Ryan), primeira violinista da orquestra e mãe de sua filha, Petra, e o banqueiro profissional e maestro amador Eliot Kaplan (o britânico Mark Strong), com quem ela criou uma fundação de incentivo a mulheres que querem reger orquestras. Mas o castelo de Lydia não tarda a começar a ruir, implodido por suas próprias vontades e decisões.
Para mostrar a jornada de glória e autodestruição da protagonista, Todd Field evita os típicos caminhos hollywoodianos. O diretor pega desvios e, em vez de oferecer cenas à la cartão postal, em que tudo está dado, nos convida a explorar detalhes para construir o quadro completo — repare em uma certa bolsa vermelha, por exemplo. Lydia Tár é nossa guia (Cate Blanchett está presente na grande maioria dos 158 minutos de duração), mas essa é uma guia não muito confiável e que nem sempre conduz o nosso olhar — volta e meia, é como se o espectador estivesse a espiando, flagrando um momento de intimidade, de vulnerabilidade, de crueldade.
Cate Blanchett no Oscar
Nas últimas 25 edições do Oscar, somente Meryl Streep, com nove indicações, apareceu mais vezes do que Cate Blanchett na lista de candidatas a melhor atriz. A australiana venceu por Blue Jasmine (2013) e competiu por Elizabeth (1998), Elizabeth: A Era de Ouro (2007) e Carol (2015), além de TÁR (2022).
Se ganhar, Blanchett entrará para o time das atrizes que conquistaram duas vezes a estatueta. Fará companhia a Ingrid Bergman, Bette Davis, Sally Field, Jane Fonda, Jodie Foster, Olivia de Havilland, Glenda Jackson, Vivien Leigh, Luise Rainer, Meryl Streep, Hilary Swank e Elizabeth Taylor. A recordista é Katharine Hepburn, com quatro, seguida por Frances McDormand, com três.
A australiana também traz no currículo o troféu de atriz coadjuvante por O Aviador (2004), categoria na qual foi indicada ainda por Notas Sobre um Escândalo (2006) e Não Estou Lá (2007).
Assim, se for premiada por TÁR, Cate Blanchett também pode inscrever seu nome em um clube mais seleto ainda, se receber seu terceiro Oscar nas categorias de atuação. Isso só foi alcançado por sete artistas: além de Hepburn e McDormand, há Daniel Day-Lewis (três vezes o melhor ator), Jack Nicholson (dois de ator e um de ator coadjuvante), Ingrid Bergman (dois de atriz e um de atriz coadjuvante), Meryl Streep (dois de atriz e um de coadjuvante) e Walter Brennan (três de melhor coadjuvante).