Pelo menos por uma noite, a figura masculina do Oscar ganhou fortes contornos femininos. Em sua 93ª edição, realizada na noite deste domingo, a premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood distribuiu um recorde de 17 estatuetas para mulheres, a começar por Chloé Zhao e Frances McDormand, diretora e atriz de Nomadland, também vencedor do troféu de melhor filme. O longa-metragem tem estreia no Brasil prevista para quinta-feira, apenas nos Estados onde os cinemas já voltaram a funcionar.
Foi apenas a segunda vez na história que uma mulher recebeu o prêmio de direção. Nas 92 cerimônias — vou repetir: 92 —, somente cinco diretoras haviam sido indicadas: a italiana Lina Wertmüller, que concorreu em 1977 por Pasqualino Sete Belezas (1975), a neozelandesa Jane Campion, premiada com o Oscar de roteiro original por O Piano (1993), e as norte-americanas Sofia Coppola, que levou o mesmo troféu por Encontros e Desencontros (2003), Kathryn Bigelow — a única ganhadora, em 2010, por Guerra ao Terror (2008), também eleito o melhor filme — e Greta Gerwig, por Lady Bird: A Hora de Voar (2017).
No seu agradecimento, Zhao, 39 anos, não fez menção ao histórico masculino da categoria. Preferiu compartilhar memórias familiares e falar sobre como encara a vida.
— Que jornada louca fizemos juntos. Ultimamente, tenho pensado muito em como sigo em frente diante das adversidades. Isso remonta à minha infância. Eu cresci na China, meu pai e eu memorizávamos poemas chineses clássicos e recitávamos juntos. Um sempre terminava a frase do outro. Um desses poemas se chama Os Três Personagens Clássicos. A primeira frase diz: "As pessoas a quem dou à vida são inerentemente boas". Isso me impactou muito quando o descobri e uso essa máxima no meu trabalho. Sempre vi bondade nas pessoas que encontrei em todos os lugares do mundo — disse a diretora na Union Station.
A estação de trem em Los Angeles era uma das várias sedes deste Oscar em tempos de covid-19. Para evitar aglomerações e para permitir a participação de concorrentes impedidos ou temerosos de viajar por causa da pandemia, a Academia montou palcos também no tradicional Dolby Theatre, na mesma cidade californiana, em Londres, em Paris e em Seul, por exemplo.
O formato, que incluiu uma mudança radical na ordem de entrega dos prêmios — os primeiros foram os de roteiro, e não o de ator coadjuvante, e a categoria de melhor filme não veio por último, mas antes das de atriz e ator — foi uma das raras surpresas em uma cerimônia cheia de confirmações de favoritismos e que terminou de modo bastante anticlimático: Frances McDormand fez um discurso curto demais, e Anthony Hopkins (Meu Pai) não estava presente.
O triunfo de Nomadland e de Zhao era dado como certo. O filme já havia recebido o Leão de Ouro no Festival de Veneza, o Gotham (para produções com orçamento de até US$ 35 milhões), o Globo de Ouro, o Critics’ Choice, o troféu da Associação dos Produtores, o Bafta (da Academia Britânica) e o Independent Spirit Awards. Chinesa radicada nos EUA, Zhao já tinha vencido o Globo de Ouro, o Bafta, o prêmio da Associação dos Diretores e o Spirit Awards.
Nomadland tem um tema absolutamente contemporâneo e bastante caro aos norte-americanos: o impacto da recessão na vida das pessoas comuns (há ecos de Você Não Estava Aqui, do inglês Ken Loach). De forma sensível, Chloé Zhao acompanha o cotidiano de uma mulher que, após o colapso econômico de uma cidade industrial nos EUA, precisa morar dentro de uma van. Fern, a personagem interpretada por Frances McDormand, contracena com nômades da vida real, como Linda May, Bob Wells e Charlene Swankie. O filme equilibra bem as atuações profissionais com as do elenco amador, a narrativa ficcional com um retrato social.
Reparação e "vingança"
A conquista de Zhao também se insere no contexto do aumento da diversidade que a Academia de Hollywood vem buscando. O estopim foi a hashtag OscarsSoWhite, deflagrada em 2016, quando, pela segunda edição seguida da premiação, nenhum ator ou atriz negro ou latino figurou entre os 20 indicados nas quatro categorias de atuação. A representação negra, que era de 8% em 2015, foi para 19% em 2020; a participação feminina, que era de 25%, pulou para 33%. Em 2017, Moonlight tornou-se o primeiro título com elenco totalmente negro e o primeiro com temática LGBT+ a ganhar o Oscar de melhor filme. No ano passado, pela primeira vez na história, concedeu a principal estatueta dourada para uma obra não falada em inglês, Parasita, da Coreia do Sul.
Como se quisessem acertar contas com o passado, os quase 10 mil membros da Academia entregaram um total de 17 prêmios a mulheres (veja a lista completa logo abaixo), superando o recorde de 15, estabelecido em 2019. Entre elas, houve mais três diretoras de longas. Duas faziam dupla com um homem: Dana Murray, que assina com Pete Docter a animação Soul, e Pippa Ehrlich, coautora, com James Reed, do documentário Professor Polvo.
A britânica Emerald Fennell ganhou o Oscar de roteiro original por seu primeiro longa, Bela Vingança (estreia no Brasil em 13 de maio) — confirmando seu triunfo no Bafta, no Sindicato dos Roteiristas e no Spirit Awards. Com ótima atuação de Carey Mulligan, um visual colorido e uma trilha sonora que inclui Paris Hilton e uma arrepiante versão de Toxic (Britney Spears), o filme consegue ser, ao mesmo tempo, deliciosamente sarcástico e cruelmente realista ao narrar a história da jovem promissora traumatizada por um episódio dos tempos de faculdade que decide combater a cultura do estupro.
Todos os premiados (*)
Melhor filme: Nomadland (estreia nos cinemas prevista para 29/4), com produção de Frances McDormand, Peter Spears, Mollye Asher, Dan Janvey e Chloé Zhao
Melhor direção: Chloé Zhao (Nomadland)
Melhor atriz: Frances McDormand (Nomadland)
Melhor ator: Anthony Hopkins (Meu Pai, em cartaz na Apple TV, no Now e no Google Play)
Atriz coadjuvante: Yuh-Jung Youn (Minari, em cartaz nos Estados onde os cinemas já voltaram a funcionar)
Ator coadjuvante: Daniel Kaluuya (Judas e o Messias Negro, em cartaz nos Estados onde os cinemas já voltaram a funcionar e sem previsão de estreia no streaming)
Roteiro original: Emerald Fennell (Bela Vingança, estreia nos cinemas em 13/5)
Roteiro adaptado: Florian Zeller e Christopher Hampton (Meu Pai)
Fotografia: Erik Messerschmidt (Mank, na Netflix)
Edição: Mikkel E.G. Nielsen (O Som do Silêncio, no Amazon Prime Video)
Design de produção: Donald Graham Burt e Jan Pascale (Mank, na Netflix)
Figurino: Ann Roth (A Voz Suprema do Blues, na Netflix)
Maquiagem e cabelos: Sergio Lopez-Rivera, Mia Neal e Jamika Wilson (A Voz Suprema do Blues)
Efeitos visuais: Andrew Jackson, David Lee, Andrew Lockley e Scott Fisher (Tenet, na Apple TV, Now, Google Play e YouTube)
Som: Nicolas Becker, Jaime Baksht, Michellee Couttolenc, Carlos Cortés e Phillip Bladh (O Som do Silêncio)
Trilha sonora: Atticus Ross, Trent Reznor e Jon Batiste (Soul, no Disney+)
Canção original: H.E.R., Tiara Thomas e Dernst Emile II, por Fight for You (Judas e o Messias Negro)
Longa de animação: Soul, de Pete Docter e Dana Murray (Disney+)
Documentário: Professor Polvo, de Pippa Ehrlich e James Reed (Netflix)
Filme internacional: Druk: Mais uma Rodada (Dinamarca), de Thomas Vinterberg (em cartaz em Apple TV, Now, Google Play e YouTube)
Curta de ficção: Dois Estranhos, de Travon Free e Martin Desmond Roe (Netflix)
Curta de animação: Se Algo Acontecer... Te Amo, de Will McCormack e Michael Govier (Netflix)
Curta de documentário: Colette, de Anthony Giacchino e Alice Doyard (YouTube)
*As plataformas de streaming foram informadas só na primeira vez em que os filmes são citados