O mundo lembrará nos próximos dias os 35 anos do pior acidente nuclear da história. Foi o da usina de Chernobyl, ocorrido entre 25 e 26 de abril de 1986 perto da cidade de Pripyat, na Ucrânia – à época, ainda uma república pertencente à União Soviética (URSS). O número de mortos é controverso até hoje, porque o cálculo envolve não apenas as vítimas diretas (bombeiros que combateram o fogo, operários que limparam os destroços, moradores próximos ao local), mas também pessoas que sofreram os efeitos da contaminação — como casos de câncer ou de bebês nascidos com malformação. Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2005 estima 4 mil mortes, a ONG ambiental Greenpeace sugere 20 vezes mais. Fato é que o desastre demandou um enorme, longo e caro esforço para conter a radiação. Pelo menos 500 mil trabalhadores foram empregados, e em 2010 o sarcófago de concreto erguido às pressas após o vazamento começou a ser coberto por outra estrutura, agora de aço e móvel, inaugurada em 2016 a um custo de 2,1 bilhões de euros financiados por vários países.
Uma versão ficcionalizada do acidente nuclear, de suas consequências imediatas e das primeiras ações tomadas pelo governo soviético é o que oferece a esplêndida minissérie Chernobyl (2019), disponível na plataforma de streaming HBO Go. (Uma versão em Blu-ray já está em pré-venda na Amazon, por R$ 109,90.)
Dividida em cinco capítulos, cada um com mais ou menos uma hora, a obra foi um sucesso de público e de crítica. À época, com 8 milhões de visualizações, chegou a representar 52% da audiência da HBO no streaming, batendo o recorde que era do badaladíssimo Game of Thrones (46%). Tem 96% de avaliações positivas, e na principal premiação da TV norte-americana, o Emmy, arrebatou 10 troféus, incluindo melhor minissérie, direção (o sueco Johan Renck), roteiro (o norte-americano Craig Mazin), fotografia (o também sueco Jakob Ihre) e trilha sonora original (a islandesa Hildur Guðnadóttir, a mesma de Coringa e Trapped). Concorria a outros nove, entre eles melhor ator (o inglês Jared Harris, no papel do renomado químico Valery Legasov), atriz coadjuvante (a inglesa Emily Watson, como a fictícia cientista Ulana Khomyuk) e ator coadjuvante (o sueco Stellan Skarsgård, que interpretou Boris Shcherbina, vice-presidente do Conselho de Ministros da URSS de 1984 a 1989, designado para supervisionar a gestão da crise desencadeada pelo acidente nuclear).
Atuando tanto in loco quanto nos bastidores, em Moscou, Legasov, Ulana e Shcherbina são alguns dos personagens com os quais a tragédia é reencenada. O elenco multifacetado permite enxergarmos as dimensões científica, política e humana. Temos, por exemplo, o ângulo do arrogante e irascível Dyatlov (Paul Ritter, morto no início de abril), engenheiro que comandou o fatídico teste na usina. Ou a visão de Lyudmila Ignatienko (Jessie Buckley, de Estou Pensando em Acabar com Tudo), a esposa grávida de um bombeiro, cuja história foi adaptada do livro-reportagem Vozes de Tchernobil, da jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 2015. E ainda o olhar do jovem militar Pavel (Barry Keoghan), recrutado para ajudar no extermínio de animais contaminados.
Embora haja liberdades artísticas que foram contestadas por autoridades e especialistas no assunto (por exemplo, o retrato de Viktor Bryukhanov, diretor da usina, e Nikolai Fomin, engenheiro-chefe, como vilões, e a queda de um helicóptero em meio à fumaça radioativa), Chernobyl se destaca pela sobriedade. As cenas são graves e tensas, como era de se esperar. O que surpreende é a sua paternidade. O criador da minissérie, o norte-americano Craig Mazin, hoje com 50 anos, construiu sua carreira na comédia — e geralmente escrachada. Entre seus créditos como roteirista, estão Pirado no Espaço (1997), Todo Mundo em Pânico 3 (2003), Todo Mundo em Pânico 4 (2006), Se Beber, Não Case! Parte II (2011) e Se Beber, Não Case! Parte III (2013). Em entrevistas, Mazin justificou a guinada para um tema e um tom sérios:
— Nós vivemos em uma época em que as pessoas parecem estar voltando ao conceito nocivo de que o que nós queremos que seja verdade é mais importante do que a verdade em si. É como se a verdade tivesse virado piada. Uma das lições mais importantes de Chernobyl é que a verdade não depende de nós.
Não bastassem a qualidade dramatúrgica e a excelência técnica, Chernobyl ganhou assustadora atualidade durante a pandemia. Cenas e falas parecem refletir o que vimos e ouvimos desde o surgimento do coronavírus.
Os esforços para acobertar o acidente nuclear remetem à situação da China, que, segundo um comitê independente formado por especialistas em saúde pública e liderado pela ex-primeira-ministra da Nova Zelândia Helen Clark e pela ex-presidente da Libéria Ellen Johnson, demorou muito para agir quando a covid-19 começou a se alastrar, em dezembro de 2019.
Os habitantes de Pripyat (hoje uma cidade deserta cobiçada por turistas) que se reúnem sobre uma ponte para observar a luz azul emitida pelo incêndio no reator lembram as perigosas aglomerações.
O sacrifício dos mineiros convocados para cavar um túnel na usina se assemelha ao dos profissionais da saúde que trabalharam na linha de frente do combate à doença.
A colocação de interesses políticos acima do conhecimento científico espelha a postura de governos como os de Donald Trump nos Estados Unidos e de Jair Bolsonaro no Brasil.
O personagem de Jared Harris, Valery Legasov, que luta para fazer o presidente Mikhail Gorbachev, Boris Shcherbina e generais soviéticos entenderem a gravidade do acidente nuclear e tomarem as medidas necessárias, dá voz aos médicos e pesquisadores que combateram a disseminação da desinformação e a adoção de tratamentos ineficazes ou até danosos:
— Qual é o custo das mentiras? Não é que as confundamos com a verdade. O real perigo é ouvirmos tantas mentiras que sejamos incapazes de reconhecer a verdade. Cada mentira que dizemos aumenta a dívida com a verdade. Cedo ou tarde, essa dívida é cobrada.