Tirando um restaurante japonês na Rua Mott, em Nova York, não há referências gastronômicas em Sharper: Uma Vida de Trapaças (2023), filme lançado recentemente na plataforma Apple TV+. Mas fiquei pensando em comida o tempo todo enquanto assistia ao primeiro longa-metragem dirigido pelo britânico Benjamin Caron, que traz no currículo episódios das séries Wallander, Sherlock, The Crown e Andor.
Como o subtítulo brasileiro entrega, Sharper é um filme sobre personagens escroques. Trata-se de um subgênero bastante popular, seja porque simplesmente admiramos o talento de uns para montar uma farsa rocambolesca, seja porque humanamente nos sentimos aliviados por descobrir, pelo menos na ficção, gente mais otária do que nós.
Filmes desse tipo também traduzem a essência do trabalho de atuação. Todo ator é um farsante: vive de fingir para nós que é outra pessoa.
Histórias com personagens que mudam sua identidade ou alteram sua personalidade para ludibriar os outros podem ser cômicas, dramáticas, trágicas e às vezes um pouco de tudo. A lista inclui títulos como Golpe de Mestre (1973), Os Safados (1988), Os Imorais (1990), Nove Rainhas (2000), Prenda-me Se For Capaz (2002), Os Vigaristas (2003), Vips (2010), Trapaça (2013), A Grande Mentira (2019), Parasita (2019) e Eu me Importo (2020).
A relação evidencia outra característica da categoria: o prestígio artístico. Golpe de Mestre arrebatou sete Oscar, entre eles os de melhor filme e direção (George Roy Hill). Os Imorais valeu indicações às atrizes Anjelica Huston e Annette Bening e ao diretor Stephen Frears, além de concorrer em roteiro adaptado. Trapaça disputou 10 estatuetas douradas. Parasita se tornou a primeira produção não falada em inglês a receber o principal troféu na premiação da Academia de Hollywood. E Eu me Importo deu um Globo de Ouro a Rosamund Pike.
Embora traga no elenco uma atriz vencedora do Oscar (Julianne Moore, por Para Sempre Alice, também indicada por Boogie Nights, Fim de Caso, As Horas e Longe do Paraíso) — e um ator ganhador de seis Emmys (John Lithgow, por Amazing Stories, 3rd Rock From the Sun — três vezes —, Dexter e The Crown), além de Sebastian Stan, que concorreu ao Emmy e ao Globo de Ouro pela recente minissérie Pam & Tommy, Sharper não tem a menor pretensão de conquistar prêmios. Sua única ambição é oferecer duas horas de entretenimento caprichado.
Foi por isso que, durante o filme, me vi pensando em comida. Mais precisamente, em fast-food.
Sharper foi feito para consumo rápido (e depois da primeira mordida é difícil parar), mas não deixa de ser um prato saboroso, graças a seus ingredientes clássicos: ganância, mentira, ciúme, reviravoltas.
Sharper está longe de ser um menu degustação como aqueles servidos em restaurantes renomados, mas procura oferecer de tudo um pouco, misturando comédia romântica e suspense policial, com uma leve pitada de thriller erótico.
Sharper carece de nutrientes, tanto os do intelecto quanto os da emoção — o espectador tarimbado com filmes sobre golpistas intui os passos dos personagens, o que reduz nosso envolvimento com eles, tornando as surpresas e decepções um tanto estéreis. Mas o lanche vem em uma embalagem bem apetitosa. O roteiro escrito por Brian Gatewood e Alessandro Tanaka estrutura-se em cinco capítulos, cada um intitulado com o nome de um personagem, uns recuando no tempo, para revelar a história pregressa e as reais intenções de alguém, outros trazendo a trama de volta ao presente ou até a um ponto futuro, para mostrar consequências. E a elegante direção de fotografia assinada pela dinamarquesa Charlotte Bruus Christensen, premiada no Festival de Cannes por A Caça (2012) e responsável também por A Garota no Trem (2016) e Um Lugar Silencioso (2018), combina-se com a suave edição do inglês Yan Miles, vencedor do Emmy por Sherlock, em 2014, e por The Crown, em 2020.
Por fim, Sharper é como aquele hambúrguer parrudo e suculento: se é melhor nem saber quantas calorias vamos ingerir, também é melhor não saber muito sobre o enredo — afinal, o segredo é fundamental dado o, digamos, ofício de seus personagens. Basta dizer que tudo começa em uma livraria dedicada a obras raras, onde o sujeito no atendimento, Tom (Justice Smith, indicado ao Framboesa de Ouro de pior ator por Jurassic World: Domínio), flerta com uma possível cliente, Sandra (Briana Middleton, de Bar, Doce Lar), convidando-a para jantar no tal restaurante japonês da Rua Mott.