Para mim, uma das grandes notícias do ano no mundo do cinema foi a volta do diretor californiano Todd Field, realizador de Entre Quatro Paredes (2001), infelizmente indisponível no streaming, mas lançado em DVD no Brasil, de Pecados Íntimos (2006), adicionado recentemente ao catálogo da HBO Max, e de Tár (2022), que no sábado (10) valeu a Cate Blanchett a Copa Volpi de melhor atriz no Festival de Veneza.
Notem o intervalo de tempo entre o segundo e o terceiro filme na sua carreira: 16 anos!
Field havia trabalhado como ator no cinema — em títulos como A Era do Rádio (1987), de Woody Allen, e De Olhos Bem Fechados (1999), de Stanley Kubrick — e em seriados como Once and Again (interpretou David Cassilli) quando resolveu se lançar na direção, aos 37 anos (hoje ele tem 58). Logo na estreia, mereceu tapete vermelho. Entre Quatro Paredes disputou cinco categorias do Oscar: melhor filme, roteiro adaptado (pelo próprio Field a partir de um conto do escritor Andre Dubus), ator (Tom Wilkinson), atriz (Sissy Spacek, premiada no Gloo de Ouro) e atriz coadjuvante (Marisa Tomei). Também recebeu a aprovação da crítica (a National Board of Review escolheu-o como diretor do ano) e do American Film Institut, que lhe concedeu a segunda maior honraria individual, a medalha Franklin J. Shaffner. No total, In the Bedroom (título original) conquistou 39 prêmios.
O diretor demorou cinco anos para reaparecer, e de novo com um convite para a festa da Academia de Hollywood: Pecados Íntimos disputou as estatuetas de melhor atriz (Kate Winslet), ator coadjuvante (Jackie Earle Haley) e roteiro adaptado, assinado pelo próprio Field na companhia do escritor Tom Perrota, autor do romance em que o filme é baseado, Criancinhas (as Little Children do título original). Ao todo, o filme recebeu 20 prêmios.
E então Todd Field sumiu.
De 2008 a 2016, houve rumores de que estaria envolvido em uma série de projetos, como um filme sobre a Revolução Mexicana estrelado por Leonardo DiCaprio e Christian Bale, outro sobre uma liga de beisebol dos anos 1970 e adaptações de obras de pesos-pesados da literatura dos Estados Unidos, como Cormac McCarthy, Joan Didion e Jonathan Franzen. Nada disso vingou.
O drama de guerra America's Last Prisoner of War, inspirado no caso real de um soldado, Bowe Bergdahl, sequestrado pelo Talibã e mantido preso de 2009 a 2014 no Afeganistão, foi anunciado e depois abandonado. Em fevereiro de 2019, surgiu a notícia de que havia entrado em pré-produção The Creed of Violence, uma história sobre dois homens que, em 1910, à época da Revolução Mexicana, tentam desbaratar uma organização que contrabandeia armas. Mas surgiram dois imprevistos, um pessoal e o outro global: primeiro, o ator principal, Daniel Craig, sofreu, durante as filmagens de 007: Sem Tempo para Morrer, em 2019, uma lesão no tornozelo que demandou uma cirurgia e que atrasou sua agenda. Depois, bem, depois veio a pandemia de coronavírus, que paralisou a indústria do cinema.
O aguardado retorno só aconteceu agora — e, direta ou indiretamente, novamente o nome de Todd Field deve aparecer no Oscar. Afinal, o drama psicológico Tár, que tem roteiro do próprio cineasta e está previsto para estrear no Brasil em janeiro de 2023, foi aplaudido em pé durante seis minutos no Festival de Veneza. Muito por conta da atuação de Cate Blanchett como Lydia Tár, uma renomada compositora e maestrina. (E é reconfortante saber que já está em pré-produção uma minissérie que Field vai dirigir, The Devil in the White City, um suspense policial ambientado durante a Feira Mundial de Chicago, em 1893, e estrelado por Keanu Reeves.)
Enquanto Tár não chega, a dica é rever seus dois filmes anteriores.
Ambos se passam em um subúrbio estadunidense, onde a superfície serena mal esconde angústias e segredos familiares. Ambos afligem e perturbam. Mas também são lindos e tocantes.
O começo idílico de Entre Quatro Paredes camufla a tempestade que está por vir. Mas é exatamente quando se formam as nuvens da desaprovação, do ciúme, da impunidade e do rancor que fica mais belo o filme.
A história abre-se com a perseguição amorosa de um casal em uma paisagem campestre. Deitados sobre a grama, banhados pelo sol, os dois manifestam, com poucas palavras, toda a felicidade que pode haver nessa vida.
Aos pouquinhos, Field vai revelando seu cenário, seus personagens, sua trama. Estamos em Camden, uma pequena cidade do Maine sustentada pela pesca de lagostas. O rapaz é Frank (Nick Stahl), filho único do médico Matt Fowler (Tom Wilkinson) com a professora de canto Ruth (Sissy Spacek), ambos cinquentões, com quem o calouro de Arquitetura passa as férias de verão. A paixão de Frank é Natalie (Marisa Tomei), mãe de dois meninos e ex-mulher do intrusivo Richard Strout (William Mapother).
Uma tensão, de início quieta, vai surgindo, temperada por diferenças sociais e culturais. Há uma briga, da qual só vemos o antes e o depois. E então, ao fim do primeiro terço, vem a tragédia.
A dor do luto é retratada com comedimento. A convivência com um assassino acaba por ser mais insuportável do que a ausência da vítima. Vão-se os carinhos, os risos e a malícia do início do filme. Surgem o silêncio que condena, o gesto que não perdoa, os olhares que dizem tudo.
Pecados Íntimos tem como cenário um subúrbio de Boston, durante um verão escaldante. A temperatura é um combustível extra à bomba-relógio emocional que os ponteiros e as engrenagens das imagens iniciais deixam entrever. As bonecas de porcelana são outro símbolo, o da fragilidade dos personagens.
O conflito central é prontamente estabelecido. Uma repórter de TV retrata a controvérsia instaurada em uma vizinhança tranquila após a libertação de um homem de 46 anos que ficara preso por exibir sua genitália para uma criança. São afixados nos postes e distribuídos às famílias cartazes com o rosto do chamado "predador" — Ronnie, papel de Jackie Earle Haley, que fez a criança forçada pela mãe a ser a nova Shirley Temple no clássico O Dia do Gafanhoto, de 1975, e não atuava desde 1993 (depois, ele foi visto em filmes como Watchmen, Ilha do Medo e Alita e em séries como Alvo Humano, Preacher e The Tick).
Na sequência, o narrador da história (voz do ator Will Lyman) vai nos apresentar o par central. Ela é Sarah (Kate Winslet), casada e com uma filhinha, com quem frequenta uma pracinha onde finge para si mesmo ser uma espécie de antropóloga — só assim para aguentar as outras três mães suburbanas. Ele é Brad (Patrick Wilson), também casado, com uma documentarista interpretada por Jennifer Connelly, e pai de um gurizinho.
Charmoso e misterioso, recebeu daquelas três mães o apelido de Rei do Baile. Brad também finge, mas para sua esposa: à noite, quando vai à biblioteca do bairro, em vez de estudar para o exame da ordem americana de advogados fica admirando garotos skatistas, devaneando com sua adolescência perdida. O desespero sufocado de Sarah e o fracasso assumido de Brad vão aproximar um do outro.
Na manhã seguinte, Sarah ouve as três mães falando sobre o retorno de Ronnie às redondezas. "Ele deveria ser castrado, rápido e limpo!", prega uma delas. Daí, outra conta que seu irmão vivia se exibindo para ela. Sarah, ironicamente, sugere que ele, então, também deveria ser castrado. A mãe que defendeu a severa punição para Ronnie retruca:
— É diferente: ele não fazia isso com estranhos!
Esse universo de hipocrisia entra em polvorosa quando Ronnie começa a circular pelas ruas, saindo da proteção de sua devotada mãe. Ao mergulhar na piscina pública lotada de crianças, ele é visto como um tubarão na beira-mar. É o monstro a quem atribuímos todos os males do mundo e os nossos demônios interiores.
Como Entre Quatro Paredes, mas com um tanto de sarcasmo e cinismo, Pecados Íntimos provoca sensações de desconforto no espectador. Pressentimos o perigo das escolhas feitas por personagens que parecem incapazes de encarar a vida adulta, presos a impulsos de crianças pequenas.