Não existe coincidência em Hollywood. O lançamento quase simultâneo das séries House of the Dragon (Casa do Dragão), na HBO Max, e O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder, no Amazon Prime Video, reflete três tendências da guerra pela audiência travada nas plataformas de streaming e no cinema.
A primeira, mais evidente, é uma aposta na retomada das aventuras fantásticas para romper a hegemonia dos super-heróis, que atualmente emplacam 11 filmes entre as 30 maiores bilheterias da história. Filia-se a essas duas produções, por exemplo, Avatar: O Caminho da Água, título a ser lançado em dezembro no qual o diretor James Cameron volta ao universo de Pandora. O original, de 2009, é o recordista de arrecadação, com US$ 2,84 bilhões.
Mistura de dragões que cospem fogo com intrigas palacianas à la Shakespeare, House of the Dragon é um derivado de Game of Thrones —na verdade, baseia-se no livro Fogo e Sangue, escrito pelo estadunidense George R.R. Martin, 73 anos, como um preâmbulo para sua saga ambientada, sobretudo, no fictício continente de Westeros. Suntuosa (ainda que algo genérica) na cenografia da Terra Média, mas com um tom adocicado de autoajuda nos diálogos, Os Anéis de Poder é inspirado na mitologia criada pelo romancista J.R.R. Tolkien (1892-1973) em obras como O Senhor dos Anéis, O Hobbit e O Silmarillion.
A segunda tendência é o que Ross Douthat, colunista do jornal The New York Times, definiu como a entrada na "era da TV blockbuster". As plataformas de streaming, disse o articulista, "estão enxugando (daí os sucessivos cancelamentos) e agrupando, buscando o equivalente às grandes produções de cinema que sustentavam os estúdios no verão dos Estados Unidos: obras caras e feitas para o grande público".
De fato, as duas séries são caríssimas — a HBO gastou quase US$ 200 milhões nos 10 episódios de House of the Dragon e investiu US$ 100 milhões no marketing; os oito capítulos de Os Anéis de Poder custaram US$ 465 milhões para o Amazon Studios. Em tempos de crise econômica por motivos que vão da pandemia de covid-19 à guerra na Ucrânia, esses orçamentos parecem uma ousadia. Assim como, aos olhos de uma considerável — e condenável — parcela do público, foi um atrevimento escalar atores negros para personagens descritos como brancos.
O britânico Steve Toussaint disse ter sofrido ataques racistas na internet após ser escalado como Corlys Velaryon em House of the Dragon. Também inglês, Lenny Henry virou alvo por interpretar em Os Anéis de Poder Sadoc Burrows, um antepassado dos hobbits.
Ambos foram sintéticos e certeiros ao refletirem sobre as reações de preconceito e intolerância.
— Quando éramos criminosos, piratas e escravos na outra série, vocês estavam bem com isso. Mas como esse cara é o mais rico da série e ele é um nobre, agora você tem um problema — disse Toussaint.
— Em mundos de dragões e elfos, por que a escalação de um homem negro é o limite dos fãs para a sua suspensão da descrença? — perguntou Sir Lenny Henry.
Mas a "ousadia" dos produtores também tem limite: Corlys Velaryon e Sadoc Burrows são somente coadjuvantes. Os personagens principais de House of the Dragon são brancos de cabelos loiríssimos: o rei Viserys Targaryen (Paddy Considine), seu irmão, o príncipe Daemon (Matt Smith), e sua filha, a princesa Rhaenyra (Milly Alcock na fase adolescente, Emma D'Arcy na fase adulta). A protagonista de Os Anéis de Poder é igualmente branca e loiríssima: Galadriel (Morfydd Clark).
Ou seja, as duas séries repetem um padrão hollywoodiano.
E aí entra a terceira tendência refletida em Os Anéis de Poder e House of the Dragon. Já faz tempo que a indústria do entretenimento no cinema, na TV e no streaming aposta no que já deu certo — portanto, não ousa. Com o aval do público (importante frisar), deixa ideias novas em segundo plano para desenvolver franquias, continuações, refilmagens, reboots e spin-offs.
As séries do Amazon Prime Video e da HBO Max inserem-se naquilo que os estadunidenses chamam de prequel, uma obra que se passa antes da história original — o exemplo clássico é o da saga Star Wars: a trilogia lançada entre 1999 e 2005 é cronologicamente anterior aos filmes de 1977, 1980 e 1983, assim como são os desenhos animados The Clone Wars (2008-2020), Star Wars Rebels (2014-2017) e The Bad Batch (2021-) e os longas-metragens Rogue One (2016) e Han Solo (2018).
Entre os casos recentes, estão as animações Lightyear (2022) e Minions 2 (2022) e os filmes de terror A Órfã 2 (2022) e O Predador: A Caçada (2022). Em 2023, estreia Wonka, com Timothée Chalamet vivendo as primeiras aventuras do excêntrico protagonista criado por Roald Dahl no livro infantil A Fantástica Fábrica de Chocolate (1964), que já foi adaptado duas vezes para o cinema — em 1971 e em 2005. Em 2024, será a vez de Furiosa, com Anya Taylor-Joy em uma versão jovem da personagem encarnada por Charlize Theron em Mad Max: Estrada da Fúria (2015). Há pouco tempo, foram anunciados os projetos Apartment 7A e First Omen, respectivamente prequels de O Bebê de Rosemary (1968) e A Profecia (1976).
Nas séries, podemos citar, entre muitos títulos, Bates Motel (2013-2017), sobre a adolescência de Norman Bates, o perturbado protagonista de Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, Gotham (2014-2019) e Pennyworth (2019-), derivadas do Bat-universo, Star Trek: Discovery (2017-) e Star Trek: Strange New Worlds (2022-), que se passam antes da série clássica (1966-1969), Jovem Sheldon (2017-), que acompanha os primeiros passos de um dos principais personagens da comédia The Big Bang Theory (2007-2019), e Ratched (2020-), que mostra o passado da enfermeira Mildred Ratched, vilã de Um Estranho no Ninho (1975).
De modo geral, prequels têm um problema de origem, bem destacado em Os Anéis de Poder: embora a série seja ambientada milhares de anos antes dos eventos mostrados nas trilogias cinematográficas O Hobbit e O Senhor dos Anéis, já sabemos mais ou menos o destino de personagens como Galadriel, Elrond e Sauron. Não existe suspense ou risco.
Se isso é até esperado em uma típica história do bem contra o mal, como esse derivado de Tolkien, torna-se um grave pecado no universo mais ambíguo de Game of Thrones retomado em House of the Dragon. Ainda que na série original houvesse tipos notadamente heroicos ou vilanescos, desde a primeira temporada o espectador conviveu com uma certeza que gerava enorme inquietação: ninguém estava a salvo em Westeros (vide o devastador episódio intitulado Casamento Vermelho).
Na prequel, a margem para ousadias é bem menor. Não à toa, depois de o primeiro capítulo emular a combinação de sexo, violência e sacrifício que marcou GoT, House of the Dragon ficou mais comportada, digamos. Talvez um pouco repetitiva e previsível, também. Mas é sempre um prazer acompanhar o xadrez político de um mundo — como o nosso — onde a percepção é maior do que a verdade, ainda mais quando brilhantemente jogado por peças do porte de Rhaenyra e Ser Otto Hightower (Rhys Ifans), a Mão no reino dos Targaryen.