1º de abril, o Dia da Mentira, é uma boa data para lembrar que cinema é pura ilusão.
Assim escreveu Eduardo Escorel, montador de clássicos do cinema brasileiro como Terra em Transe (1967), Macunaíma (1969), São Bernardo (1971) e Cabra Marcado para Morrer (1985), em coluna publicada pela revista Piauí em fevereiro de 2012: "A ilusão é inerente ao cinema — o aparente movimento das imagens resulta, na verdade, da projeção em sequência rápida de imagens fixas, cada uma ligeiramente diferente da anterior. A essa característica imanente, soma-se outra: a impressão de realidade — imagens bidimensionais, incluindo as que simulam três dimensões, articuladas segundo convenções de linguagem dominantes, são vistas como se fossem a reprodução da realidade".
Por natureza, cineastas e atores vivem enganando os espectadores. Em Psicose (1960), por exemplo, Alfred Hitchcock (1899-1980), o mestre do suspense, fez a plateia achar que estava contando a história de uma secretária que roubou US$ 40 mil da imobiliária onde trabalhava para pagar as dívidas de seu amante, até que a famosa e fatídica cena do chuveiro nos mostrou que a história sendo contada era outra.
Às vezes, o público dá o troco. Valendo-se do fato de Stanley Kubrick (1928-1999) ser recluso e avesso a fotos e entrevistas, um espertalhão chamado Alan Conway se passava pelo diretor para aplicar golpes na alta e na baixíssima sociedade londrina durante as filmagens de De Olhos Bem Fechados (1999). O picareta seduzia suas vítimas com promessas de incluí-las em futuros projetos: A Morte do Designer, Receitas a Noite Toda ou Darling, a que Amou Demais — alguém imagina o realizador de Spartacus (1960), 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e Laranja Mecânica (1971) assinando filmes assim? Não durou muito a impostura, pois Conway exagerou na ambição e mostrou saber menos que deveria sobre seu personagem. O episódio virou filme, Totalmente Kubrick (2005), dirigido por Brian W. Cook, ex-assistente do cineasta, e protagonizado por John Malkovich.
Há dois subgêneros que se especializaram na mentira: o dos filmes de terror no estilo chamado found footage, baseados em imagens amadoras supostamente reais encontradas ao acaso, e o dos falsos documentários, conhecidos nos Estados Unidos de mockumentaries — a junção, em inglês, de mock (zombar) e documentary (documentário). Dos primeiros, um dos exemplos mais célebres é A Bruxa de Blair (1999), de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez. Na trama, três estudantes de cinema (Heather Donahue, Michael C. Williams e Joshua Leonard, interpretando a si próprios) embrenham-se em uma floresta para produzir um documentário sobre a lenda de uma bruxa. Reza a lenda — agora, a do filme — que, para que tudo parecesse mais real, os diretores assustavam o elenco com ruídos, gritos, objetos de feitiçaria e bilhetes para semear a discórdia. A Bruxa de Blair é um dos maiores sucessos financeiros de todos os tempos: custou US$ 60 mil e arrecadou US$ 140 milhões.
Entre os expoentes do segundo subgênero, está Borat: O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América (2006), que faturou US$ 262 milhões (quase 15 vezes o seu custo), concorreu ao Oscar de roteiro adaptado e valeu a Sacha Baron Cohen o Globo de Ouro de melhor ator em comédia ou musical. No filme dirigido por Larry Charles, Cohen finge ser um jornalista da TV cazaque em viagem pelos Estados Unidos. Desavisados ou não da falsidade, os entrevistados vivem situações embaraçosas, mas também soltam o freio e revelam uma série de preconceitos.
Uma das mentiras mais notórias do cinema é a que envolveu o filme Eu Ainda Estou Aqui (2010), de Casey Affleck. Tudo começou dois anos antes, quando, nas entrevistas de promoção do drama Amantes (2008), o ator Joaquin Phoenix apareceu barbudo, de óculos escuros e declarando que iria interromper a carreira no cinema para se dedicar ao rap e ao hip hop.
— Não há engano algum. Pode ser que esteja sendo ridículo? Pode ser que minha carreira na música vá ser irrisória? Sim, isso é possível, mas certamente não é o que pretendo — disse Phoenix, então com 34 anos, a apresentadores de talk shows como David Letterman.
Um ano e meio depois, ele voltou ao programa de Letterman, agora com a cara limpa:
— Você já entrevistou tantas, tantas pessoas, e eu presumi que saberia a diferença entre um personagem e uma pessoa real... Mas peço desculpas. Espero não tê-lo ofendido.
A suposta transformação era uma farsa: fazia parte da produção de Eu Ainda Estou Aqui, dirigido pelo ator Casey Affleck, futuro ganhador do Oscar por Manchester à Beira-Mar (2016).
Durante todo o período de filmagem, Joaquin Phoenix permaneceu no personagem para aparições públicas, dando a muitos a impressão de que ele estava genuinamente buscando uma nova carreira na música. O cineasta James Gray, que, além de em Os Amantes, trabalhara com o ator em Caminho Sem Volta (2000) e Os Donos da Noite (2007), manifestou publicamente estar desapontado por não poder dirigi-lo novamente (o que voltou a acontecer em Era uma Vez em Nova York, de 2013).
O ator escreveu raps ("Eu adoro os aspectos narrativos e os jogos de palavras do hip hop", disse em entrevistas. "Acho as rimas fantásticas e amo as emoções cruas"), ensaiou e se apresentou perante uma plateia. Aproximou-se de Sean Combs na esperança de que o rapper produzisse um disco. O personagem permitiu a Affleck e Phoenix, autores do roteiro, criticar satiricamente a indústria das celebridades e a forma como a imprensa acompanha esse universo.
O que ver e onde ver
- Psicose (1960), de Alfred Hitchcock (Globoplay e Telecine)
- A Bruxa de Blair (1999), de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez (Amazon Prime Video e Star+)
- Totalmente Kubrick (2005), de Brian W. Cook (foi lançado em DVD pela Califórnia Filmes)
- Borat: O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América (2006), de Larry Charles (Star+)
- Eu Ainda Estou Aqui (2010), de Casey Affleck (MUBI e Looke)