A foto que ilustra esta reportagem é uma mentira (que revelaremos mais para baixo). Não fizemos com você nada que você mesmo já não tenha feito em alguma circunstância. A arte da enganação permeia as relações sociais humanas. Mas não é exclusividade nossa. A natureza também tem suas artimanhas: quem nunca ouviu falar em animais que mudam de cor para despistar predadores?
Considerada parte essencial das interações humanas, a mentira tem dois porquês, explica a pós-doutora em Psicologia Mônica Portella, do Instituto Internacional de Psicologia Positiva: manter as relações sociais e evitar uma punição. Quem nunca mentiu para a amiga que o novo corte de cabelo dela estava lindo?
— Mentir, todo mundo mente. Não é apologia à mentira. Mas ela, de certa forma, preserva relações sociais. Não são mentiras horrorosas, são simples. Você diz que gostou do corte, que ela está linda para não dizer que ela está ridícula, que está uma baranga — diz a especialista, autora do livro Como Identificar a Mentira.
A outra situação apontada por Mônica está ligada àquelas mentirinhas “brancas” que você conta a seu chefe para evitar um puxão de orelha: “o trabalho está quase pronto”, quando ainda faltam dias para concluí-lo; ou “na segunda-feira, o projeto estará na sua mesa”, quando você sequer deu o pontapé inicial.
Políticos mentem para conseguir os votos que eles desejam, e homens de negócios mentem para conseguir os lucros que eles desejam. Na vida cotidiana, nós mentimos para conseguir empregos, para conseguir sexo, para ser amado, para manipular nossas crianças. E nós também mentimos para nós mesmos, para evitar ansiedade, vergonha, culpa ou desespero.
DAVID LIVINGSTONE SMITH
Professor de filosofia da University of New England (EUA) e autor do livro "Por que Mentimos"
David Livingstone Smith, professor de Filosofia da University of New England, nos Estados Unidos, e autor do livro Por que Mentimos: os Fundamentos Biológicos e Psicológicos da Mentira, afirma que a lorota está diretamente relacionada às vontades e ambições humanas. Segundo ele, onde existir um desejo humano, existirá a tentação.
— Políticos mentem para conseguir os votos que eles desejam, e homens de negócios mentem para conseguir os lucros que eles desejam. Na vida cotidiana, nós mentimos para conseguir empregos, para conseguir sexo, para ser amado ou admirado pelas pessoas que importam para nós. Nós mentimos para conseguir promoções no trabalho, e para manipular nossas crianças. E nós também mentimos para nós mesmos, para evitar ansiedade, vergonha, culpa ou desespero — elenca.
Mentir faz parte do desenvolvimento infantil
Mesmo com esse apanhado de lorotas que contamos na vida adulta – pesquisas estimam que a mentira faça parte de 25% das nossas interações–, é lá na infância que começamos nossa jornada de inverdades. Mônica diz que as enganações começam antes mesmo de esboçarmos as primeiras palavras, com as conhecidas manhas:
— Se a criança quer algo, chora. Quando se dá o que ela quer, ela cessa as lágrimas. Nenhuma emoção negativa verdadeira acaba de repente. São as famosas lágrimas de crocodilo.
Mais tarde, as mentiras tomam forma de palavras e ganham sofisticação. Embora seja vista com maus olhos pelos pais, a enganação é típica da infância e faz parte do desenvolvimento infantil. Pós-doutor em Psicologia, Kang Lee, que há mais de 20 anos se dedica a estudar a mentira, já conduziu diversos experimentos para analisar como as crianças mentem e como elas vão desenvolvendo a capacidade de melhorar na enganação.
Observamos que, independentemente de gênero, país e religião, aos dois anos de idade, 30% mentem e 70% contam a verdade sobre a transgressão. Aos três anos, 50% mentem e 50% falam a verdade. Aos quatro anos, mais de 80% mentem.
KANG LEE
Pós-doutor em Psicologia, que conduziu um estudo com crianças
Em alguns de seus experimentos, realizados ao redor do mundo, meninos e meninas de diversas faixas etárias eram convidados a participar de um jogo no qual precisavam adivinhar números colocados em cartas. A recompensa? Um grande prêmio. Porém, no meio de brincadeira, o adulto que conduzia a pesquisa precisava se retirar da sala. Antes, ele orientava a pequena cobaia a não espiar os números. Câmeras espalhadas pela sala denunciavam os mentirosos.
— Nós observamos que, independentemente de gênero, país e religião, aos dois anos de idade, 30% mentem e 70% contam a verdade sobre a transgressão. Aos três anos, 50% mentem e 50% falam a verdade. Aos quatro anos, mais de 80% mentem. Depois dessa idade, a maioria das crianças mente — disse Lee em uma palestra apresentada em 2016 no projeto TED.
Esse fenômeno, ele explica, depende de duas habilidades: mind-reading (leitura da mente, em tradução livre) e autocontrole. A primeira, basicamente, significa a capacidade de reconhecer que “eu sei de algo que você não sabe, logo, posso mentir para você”. Já a segunda está relacionada com a aptidão de controlar discurso, expressões faciais e linguagem corporal para tornar a lorota ainda mais convincente.
Assim sendo, crianças pequenas que tinham essas habilidades se mostraram mentirosos mais refinados em relação às que não tinham. Apesar de o ato de mentir ser considerado ruim, Lee sugere que, antes de se preocupar com as mentirinhas contadas pelos pequenos, os pais devem “comemorá-las”, pois significam o atingimento de um novo marco do desenvolvimento.
Em um de seus últimos estudos, Lee e sua equipe ensinaram um determinado grupo de crianças a mentir para ganhar um jogo. Elas obtiveram vantagens cognitivas em relação ao outro grupo, que não recebeu as instruções. Com os resultados, Lee evidenciou que mesmo os comportamentos considerados negativos podem conferir benefícios quando demandam busca de objetivos e resolução de problemas.
— Esta foi a primeira evidência de que aprender a enganar causalmente aumenta as habilidades das crianças pequenas — disse o pesquisador ao site da University of Toronto, onde leciona, no Canadá. – Eu não acho uma boa ideia, mas deixar os pequenos fazerem brincadeiras com enganações não é má ideia — completou, alertando que os pais não devem estimular a mentira.
Acredite, pode trazer benefícios
Dizer para sua esposa que você ficou preso no trabalho até tarde para não contar que saiu para um chope com seus amigos (ou vice-versa) – eis uma justificativa comum para uma mentira. Isso não é errado, tampouco imoral, segundo o professor Livingstone Smith. Esse tipo de engodo tem efeito protetor, evitando que os alvos dela se machuquem. Em alguns casos, ele diz, não mentir é que é moralmente errado.
Imagine que você está morando na Alemanha de 1944 e está escondendo judeus na sua casa. Membros da Gestapo chegam a sua porta e perguntam se você está escondendo judeus. Obviamente, contar a verdade seria horrivelmente imoral. Em situações como essa, você tem uma obrigação moral de mentir.
DAVID LIVINGSTONE SMITH
PROFESSOR DE FILOSOFIA DA UNIVERSITY OF NEW ENGLAND
—Imagine que você está morando na Alemanha de 1944 e você está escondendo judeus na sua casa. Membros da Gestapo chegam a sua porta e perguntam se você está escondendo judeus. Obviamente, contar a verdade seria horrivelmente imoral. Em situações como essa, você tem uma obrigação moral de mentir. Mais frequentemente, a vida pode ser difícil, e algumas vezes nós precisamos de ilusões para proteger a nós e aqueles a quem amamos do desespero. Um pouco de desonestidade pode nos ajudar a suportar a noite — avalia.
A linha que separa a mentirinha da mentira grave é bastante tênue. Um bom parâmetro para compreender essa fronteira é avaliar os possíveis danos que pode trazer à outra pessoa. Se a inverdade servir para prejudicar ou caluniar outro indivíduo, aí temos um malefício.
Outra mentira totalmente negativa é aquela muitas vezes contadas no divã. Mônica não mede palavras ao classificar o ato de mentir para o terapeuta como uma “imbecilidade”:
— Ele está ali para melhorar. Se mentir, não está se ajudando. Teoricamente, o terapeuta não deve fazer julgamento. Então, quanto mais o paciente for verdadeiro, mais o profissional poderá ajudar.
*Colaborou Karine Wenzel (Especial)
Como fizemos a foto desta reportagem
A inspiração foi uma famosa imagem que o fotógrafo argentino Rubén Digilio captou para o jornal Clarín durante a campanha eleitoral de Mauricio Macri à presidência do país vizinho, em 2015. Graças à combinação entre uma luz lateral projetada e o ângulo arredondado de uma coluna, a sombra distorcida do então candidato mostra um nariz maior, um nariz de Pinóquio – que, como todo mundo sabe desde criança, cresce quando ele mente.
Nossa dublê de Macri foi a modelo Siane Leonhardt, da Agência People. Para produzir a cena, os designers Gilmar Fraga e Paola Gandolfo contaram com o fotógrafo Mateus Bruxel, e André Ávila registrou o making of, que revela a "mentira" da capa.
Mentir é patológico?
- Os especialistas são enfáticos ao afirmar que todos nós mentimos frequentemente. Mas há casos em que a mentira pode ser resultado de uma doença. Transtorno obsessivo compulsivo (TOC) e transtorno de personalidade antissocial são alguns dos problemas que podem fazer com que as pessoas mintam compulsivamente para obter determinados benefícios, exemplifica a psicóloga Mônica Portella. Ambientes negativos, onde há mentiras e falta de confiança, podem ensinar as crianças a mentirem mais.
Por que fofocamos?
- Tão corriqueiro quanto mentir, o ato de falar da vida alheia – e, não raro, dar uma aumentadinha na história – pode esconder, no fundo, problemas de autoestima. Mônica diz que pessoas sem muita confiança em si mesmo podem mentir sobre um comportamento supostamente inadequado dos outros para se sentirem melhores ao invés de olharem para seus próprios erros.
Por que compartilhamos fake news?
- Com a popularização das redes sociais e dos aplicativos de troca de mensagens, surgiu também o fenômeno das fake news (notícias falsas). Pesquisadora do tema, a jornalista Taís Seibt explica que nem sempre uma notícia falsa é uma mentira deslavada. Muitas vezes, são informações tiradas de contexto, distorcidas ou manipuladas.
- Uma das coisas comuns é a circulação de notícias velhas como se fossem atuais, fotos de acontecimentos passados como se fossem de hoje. Muitas vezes, a notícia certa não é uma mentira, mas sim algo tirado do contexto ou distorcido.
- Para Taís, o compartilhamento é provocado, principalmente, por um ambiente de desinformação, no qual as pessoas acreditam em coisas que não são baseadas em fatos: elas disseminam esse tipo de conteúdo porque veem ali suas crenças e convicções afirmadas, isso mexe com as emoções.
- Também há as relações de confiança: as pessoas tendem a dar mais confiança para informações recebidas de um parente ou amigo, por exemplo, do que em um veículo de comunicação.
Dá para detectar uma mentira?
- O professor de Filosofia Livingstone Smith garante que não existe nenhum método mágico capaz de identificar mentiras deslavadas. No entanto, ele sugere que se preste atenção ao comportamento não verbal de quem fala mais do que na linguagem verbal.
- Também é importante que você tente ser honesto consigo mesmo sobre as coisas em que você anseia acreditar, porque isso o torna vulnerável à mentira dos outros, indica o americano.
- De acordo com a psicóloga Mônica, não existe um único sinal, gesto ou ação que vá ser capaz de dedurar uma mentira. Não há evidências científicas que comprovem, por exemplo, que virar o olho para determinado lado durante uma conversa significa mentira ou verdade. E os indícios da lorota variam de pessoa para pessoa.
- Pessoas treinadas conseguem identificar se um indivíduo está mentindo com uma taxa de sucesso de 80% em uma avaliação rápida de uma série de comportamentos, afirma a especialista. Um dos métodos mais usados é o desenvolvido pelo psicólogo norte-americano, ex-professor da Universidade da Califórnia, Paul Ekman, que estudou as expressões faciais. "A chance do leigo identificar é de 50%. É chute", diz Mônica.