O tempo no Brasil é de divisão, raiva, rancor. E se tentássemos perdão?
Pode parecer uma solução simplória, mas nos últimos 30 anos a arte de perdoar se consolidou como um campo de estudo científico de resultados notáveis. Os pesquisadores da área descobriram que superar o ressentimento, desculpar as ofensas e deixar para lá os planos de vingança é um remédio poderoso para a saúde da mente e do corpo. O perdão foi relacionado a efeitos como melhora da condição cardíaca, reforço das defesas do organismo e redução de depressão e ansiedade.
Isso vale para indivíduos. Será que vale também para toda uma sociedade necessitada de reconciliação, como a brasileira, cindida ao meio por ódios ideológicos, políticos e eleitorais? E como é que se chega lá? GaúchaZH colocou a questão aos maiores especialistas na ciência do perdão no Brasil e no mundo.
Um dos papas do assunto é o psicólogo Everett L. Worthington, professor emérito da Virginia Commonwealth University (Estados Unidos), responsável por conduzir estudos e formular teorias que moldaram a compreensão do tema. Para ele, o que está acontecendo no Brasil não tem nada de singular. O ambiente de divisão nas sociedades, acredita, tornou-se uma epidemia mundial. Worthington entende que o perdão pode ser um bom antídoto:
— Perdoar é uma boa maneira de lidar com situações injustas, ofensivas e dolorosas.
O psicólogo observa que existem dois tipos de perdão, e que ambos podem ajudar em sociedades com feridas abertas. O primeiro diz respeito a uma decisão deliberada de perdoar, levando a uma mudança prática de atitude em relação ao ofensor (como abrir mão da vingança e tratar o outro como alguém de valor). Essa forma pode ser mais rápida. Outra, em que a mudança ocorre de forma lenta e muitas vezes não se completa, é o perdão emocional, no qual as emoções negativas vão sendo substituídas por positivas, como a empatia, a simpatia, a compaixão e o amor. O professor diz:
A vingança certamente não traz cura alguma. Se reduzirmos a raiva, seremos mais capazes de manter a civilidade e ao mesmo tempo seguir comprometidos com nossa própria posição.
EVERETT L. WORTHINGTON
PSICÓLOGO AMERICANO
— Perdoar é uma forma de tratar as mágoas interpessoais. A vingança certamente não traz cura alguma. No caso do perdão decisional, resolvemos tratar as pessoas como valiosas. O perdão emocional substitui o ódio, o ressentimento, a raiva e a amargura. Se decidirmos tratar as pessoas de modo diferente e reduzirmos a raiva, seremos mais capazes de manter a civilidade e ao mesmo tempo seguir comprometidos com nossa própria posição.
O exemplo da África do Sul
Outro pioneiro dos estudos sobre perdão, Robert Enright, da University of Wisconsin-Madison (EUA), aponta como modelo a África do Sul. Após o fim do apartheid, o regime de segregação racial que vigorou de 1948 a 1994, o governo adotou uma estratégia de reconciliação entre os perpetradores brancos e as vítimas negras. Foi criada uma Comissão de Verdade e Reconciliação, diante da qual pessoas que sofreram abusos podiam relatar suas experiências. Os ofensores poderiam fazer o mesmo e pedir anistia. Embora imperfeições tenham sido apontadas, o modelo de busca da paz é tido como fundamental para a transição da África do Sul para a democracia.
O quadro brasileiro é bem diferente, mas a necessidade de perdão é similar. Enright acredita que as escolas são um bom lugar para começar.
— Quando oferecemos educação para o perdão nas escolas, uma consequência é um aumento da cooperação entre os estudantes. Aprender a perdoar ajuda as pessoas a colaborarem umas com as outras de forma mais profunda — cita.
O desafio é como passar da teoria para a prática. Orientado por Enright no doutorado, Julio Rique Neto, professor da Universidade Federal da Paraíba, tem quebrado a cabeça com essa questão. Encara com preocupação o clima de ódio político que ganhou o país – e que se imiscuiu inclusive em sua vivência pessoal.
— As pessoas mais razoáveis estão se distanciando. É o meu caso pessoal. Eu vi a mudança nas pessoas que são importantes para mim, com quem tenho um vínculo de intimidade, de amizade e de confiança, e o prejuízo que isso causou em nossa relação. Inicialmente, a raiva foi grande, de querer responsabilizar, culpar o outro. Mas sei que isso significa manter a interação negativa. Há um corte das comunicações. Eu me comunico de maneira breve e pontual com essas pessoas que sei que vivem querendo me atacar. Como trabalho com perdão, com moral, e como tenho posição política, o ataque é diário. É uma notícia aqui, uma acusação acolá. Não vou me expor a isso. Enquanto o outro não parar de me atacar, não vou me colocar como alvo fácil — desabafa Rique Neto, reconhecendo que a atitude que tomou não soluciona nada.
Se até quem poderia nos ajudar a achar a saída está preso ao labirinto, é sinal de que o problema é sério mesmo. O professor da Paraíba não oculta essa realidade. Ele avalia que o Brasil caiu em um estágio primitivo, de selvageria, caracterizado por sentimentos negativos primais: a raiva, o nojo e o medo.
— É complicado falar de perdão nesse contexto. Há um conflito que envolve todos os grupos, e ninguém consegue sair dele. Cada um põe a culpa no outro e se acha vítima, fica um jogo de culpa, de medo e de raiva onde você vai perdendo o controle racional.
A importância das iniciativas individuais
Para Rique Neto, fica muito difícil perdoar se as ofensas não estão no passado, mas continuam a ocorrer todos os dias e a nos assaltar sempre que acessamos as redes sociais. Ele acredita que o processo de diálogo e perdão tem de começar por cima, pelos líderes políticos e de instituições, que segundo ele estão transmitindo o modelo baseado na raiva, no medo e no nojo.
Quando o ressentimento e a inquietação política prevalecem em uma sociedade, os indivíduos precisam adotar o perdão para que os grandes grupos sociais se tornem mais tolerantes.
LOREN TOUSSAINT
PSICÓLOGO AMERICANO
— O caminho é pelo diálogo, mas precisa haver alguém que lidere isso, alguém que diga não à raiva, o que está faltando. O pensamento radical tem de diminuir. O caminho deve ser um encontro em direção ao centro, a um fator comum. Uma cultura é influenciada por quem está no comando. O problema é que o Brasil hoje está no caos, e o perdão não vai funcionar no caos. Estamos vivendo o oposto do perdão. Abriram-se portas que deveriam ter continuado fechadas — prega o psicólogo, que recomenda um esforço de autocontrole nos posicionamentos e comportamentos, além de uma tentativa de debater com civilidade e objetividade.
O psicólogo Loren Toussaint, do Luther College (EUA), acredita que essas iniciativas individuais, na base da sociedade, podem ser cruciais e influenciar todo o corpo social. Ele também sugere o envolvimento da mídia, das escolas e do governo na promoção do perdão:
— Quando o ressentimento e a inquietação política prevalecem em uma sociedade, o perdão é da maior importância. As comunidades e organizações são compostas de indivíduos, e esses indivíduos precisam adotar o perdão para que os grandes grupos sociais se tornem mais tolerantes.
Leia as outra duas partes desta reportagem:
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