Em 1989, a revista científica Journal of Adolescence publicou o primeiro estudo empírico a ter como tema o perdão concedido por um indivíduo a outro. Passados exatos 30 anos, o campo se expandiu (principalmente nos Estados Unidos, onde há uma série de profissionais e clínicas especializados), gerou inúmeras publicações e trouxe revelações importantes para a saúde humana (leia no quadro ao fim desta reportagem).
Principal autor daquele estudo pioneiro, o psicólogo Robert Enright ofereceu a GaúchaZH uma explicação sobre como esse ramo da psicologia consegue ajudar a superar o rancor e a seguir em frente. O primeiro passo, diz ele, consiste em compreender com clareza o que o perdão é (uma virtude moral na qual a pessoa tratada injustamente tenta ser boa em relação a quem cometeu a injustiça) e o que o perdão não é (abandonar a busca por justiça e desculpar o comportamento injusto).
— Quando a pessoa entende o que é o perdão, costumamos passar-lhe um tema de casa: tentar não fazer mal a quem a feriu. Depois, pedimos que enxergue o valor inerente do outro, não por causa do que foi feito, mas apesar disso. Quando a pessoa ofendida começa a ver o ofensor através dessa perspectiva mais ampla, então a empatia e a compaixão podem começar a emergir — explica Enright.
Esse processo ajuda a vítima a lidar com a dor, a perceber quem ela é e a não retaliar. Quando estiver fortalecida, pode até mesmo manifestar alguma atitude positiva em relação ao ofensor, algo simples, como dizer um comentário gentil, retornar um e-mail ou fazer um comentário elogioso a terceiros.
— Em nossos estudos científicos, descobrimos que, à medida que as pessoas seguem esse padrão, elas tendem a diminuir raiva, ansiedade e depressão e a aumentar a autoestima e a esperança no futuro — acrescenta Enright.
Dito assim, parece muito bonito, mas quem deseja ou tem disposição de perdoar um ato grave de violência, uma traição dolorosa ou alguma injustiça que causou um prejuízo considerável em sua vida? Não é para todo mundo, reconhecem diferentes especialistas ouvidos por GaúchaZH. Mas também é verdade que se trata de algo do interesse do ofendido, mais do que do ofensor. A pessoa que não perdoa chafurda na raiva. A que consegue perdoar tem condições de retomar o controle da própria vida e seguir adiante.
Não é preciso chegar a nutrir afeição pelo ofensor
Criador de um dos métodos mais conhecidos para ajudar a perdoar, composto de nove etapas, o psicólogo Frederic Luskin, reconhece que o esforço toma tempo, mas compensa – reduz a dor, combate doenças cardíacas e traz autoconfiança, aumenta a produtividade, reforça as relações.
Quando a pessoa entende o que é o perdão, costumamos passar-lhe um tema de casa: tentar não fazer mal a quem a feriu. Depois, pedimos que enxergue o valor inerente do outro, não por causa do que foi feito, mas apesar disso. Quando a pessoa ofendida começa a ver o ofensor através dessa perspectiva mais ampla, então a empatia e a compaixão podem começar a emergir.
ROBERT ENRIGHT
PSICÓLOGO AMERICANO
— O perdão funciona para uma ampla variedade de ofensas. A melhor estratégia é reconhecer que é possível superar o passado e que não há necessidade de ser uma vítima. Não dá para apressar. A mágoa sempre vem primeiro, só depois a libertação. A ofensa ainda vai doer, porque não existe atalho. Pode-se perdoar e, ainda assim, ter de se defender do ofensor. Também pode-se perdoar e não se reconciliar — diz.
As alternativas podem ser mais custosas, observa o professor Julio Rique Neto, da Universidade Federal da Paraíba. Ele dá como exemplo uma pessoa que foi prejudicada no trabalho e tem de conviver diariamente com o colega do qual tem raiva. Ele pode, por exemplo, controlar a ansiedade por meio de algum hobby ou de corridas pela manhã, antes de sair para o serviço. Mas, nesse caso, tem de correr todos os dias para dar vazão à energia da raiva e do ressentimento.
— O que ocorre é que essa prática que tem como objetivo baixar a energia não gera mudança de pensamento — argumenta.
É por isso que o perdão pode vir em socorro para mudar o pensamento e superar a raiva e o ressentimento. Rique Neto recomenda que essa busca seja feita com acompanhamento de um terapeuta:
— Quando a pessoa começa a considerar o perdão como uma resposta a essa raiva que precisa ser trabalhada e que está prejudicando seu bem estar, ela deve procurar uma abordagem terapêutica. A ajuda é necessária. Sozinho não se chega lá, porque somos muito presos a nossos sentimentos. A raiva é uma carga primal importante, um sentimento evolutivo que sinaliza estarmos sendo abusados, vitimados ou injustiçados. Mas quando um evento a estimula muito, ela toma conta do pensamento. Precisa alguém de fora, que consegue ver a situação com mais racionalidade.
Como é que alguém identifica que conseguiu? Que perdoou? Fácil: é quando ele esquece a ofensa e, ao relembrá-la, já não sente raiva. Para Everett Worthington, não há necessidade de chegar a nutrir uma afeição pelo ofensor. Se a pessoa parou de querer o mal do outro, parou de planejar vingança, parou de achar que o outro é um ser vil, é suficiente. Isso já é perdão.
Os benefícios do perdão
- Saúde cardíaca – Perdoar, dizem diferentes estudos, tem entre seus efeitos reduzir a pressão arterial, o que pode prevenir problemas do coração. Uma pesquisa de 2011, feita com casais, mostrou que, quando um perdoava o outro, ambos registravam redução da pressão arterial. Outro trabalho, da New York University, feito com pacientes cardíacos, revelou que aqueles com propensão a perdoar tinham menos ansiedade e depressão, além de apresentar menores níveis de colesterol.
- Expectativa de vida – Um estudo do Luther College (EUA), publicado em 2011 no Journal of Behavioral Medicine, aponta que pessoas capazes de perdoar incondicionalmente podem viver mais, em comparação com as pessoas que só perdoam quando alguém se desculpa.
- Fortalecimento do sistema imunológico – Portadores do vírus HIV que perdoaram alguém registraram um incremento nas células de defesa, segundo um trabalho desenvolvido em 2011 no Duke University Medical Center (EUA), sugerindo que o perdão pode ter efeitos positivos para o sistema imunológico.
- Saúde mental e redução do estresse – Uma série de estudos associou a dificuldade de perdoar a emoções como raiva e tristeza e a reações fisiológicas que incluem tensão muscular, suor e aumento da pressão arterial. O perdão tem a capacidade de reduzir esses efeitos negativos, contendo a ansiedade, a depressão e a ira. Até o sono fica melhor. Pesquisas apontam também que a capacidade de perdoar protege contra efeitos negativos do estresse na saúde mental.
- Redução do cortisol – Perdoar reduz níveis do hormônio cortisol, o que além de ser bom para controlar o estresse no curto prazo pode trazer benefícios mais duradouros: no longo prazo, altos níveis podem afetar várias funções do organismo, incluindo cérebro, sistema digestivo e sistema cardiovascular.
- Em paz consigo mesmo – No caso das pessoas que sentem remorso por algo que fizeram, a reconciliação com a vítima pode ter efeito terapêutico, conforme uma pesquisa publicada no Journal of Positive Psychology. De acordo com o trabalho, obter o perdão ajuda a pessoa a também se autoperdoar.
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