Se filmes bons, como Elvis (2022), podem perder pontos quando vistos em casa, e não no cinema, filmes ruins, como Thor: Amor e Trovão (2022), já disponível no Disney+, ficam piores ainda. Sem a distração da tela grande, salta aos olhos seu desequilíbrio; longe do som potente, falam alto seus problemas; desobrigados da imersão, nos tornamos suscetíveis à tentação de pular cenas ou simplesmente fazer outra coisa.
A 29ª aventura do Universo Cinematográfico Marvel não foi bem de crítica: no ranking do Rotten Tomatoes, por exemplo, só está acima de Eternos (2021); no meu, ficou na 17ª colocação quando estreou, em julho, mas talvez caia algumas posições na próxima atualização. Pode-se dizer que nem junto ao público mostrou-se tão poderoso. Claro que US$ 756,4 milhões é uma senhora bilheteria (a sexta maior da temporada até agora), mas Amor e Trovão ficou consideravelmente abaixo de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (US$ 955,7 milhões) e perdeu para Batman (US$ 770,8 milhões), que foi lançado em março, distante do lucrativo verão estadunidense. Também rendeu menos que o filme anterior do personagem, Thor: Ragnarok (2017), que arrecadou US$ 853,9 milhões.
Thor: Amor e Trovão bem que poderia se chamar Thor: Amor, Trovão e Farofa. A farofa aqui tem um duplo sentido. Por um lado, remete ao humor fanfarrão empregado pelo diretor neozelandês Taika Waititi e abraçado pelo ator australiano Chris Hemsworth, cada vez mais à vontade, no seu corpanzil de 1m90cm, para se despir do senso de ridículo (e das próprias roupas). Por outro, alude à banda de hard rock que domina a trilha sonora do filme, Guns N' Roses: tocam Sweet Child O' Mine, Welcome to the Jungle, Paradise City e November Rain. E seu vocalista, Axl Rose, um epíteto da bazófia, empresta o prenome para o filho de Heimdall, o deus de Asgard encarregado de proteger a ponte Bifrost, a ligação com o mundo dos mortais.
Esta é a quarta aventura solo do super-herói da Marvel, uma honra que, até o momento, coube apenas a Hemsworth. Aliás, ele igualou o recorde de Christopher Reeve (1952-2004), que encarnou o Superman, da DC, na tetralogia produzida entre 1978 e 1987. No total, o Thor do australiano já apareceu em oito títulos — o ranking é liderado pelo Nick Fury de Samuel L. Jackson e pelo Capitão América de Chris Evans (ambos com 11 filmes), seguido pelo Homem de Ferro de Robert Downey Jr. (10).
E Amor e Trovão é o segundo filme do personagem dirigido por Waititi, um cineasta conhecido pela irreverência — traz no currículo O que Fazemos nas Sombras (2014), um falso documentário sobre o mundo dos vampiros, e Jojo Rabbit (2019), que, sem esquecer dos horrores do nazismo, satiriza Hitler. Em Thor: Ragnarok (2017), ele conduziu uma guinada na carreira do Deus do Trovão concebido em 1962 pelos quadrinistas Stan Lee (1922-2018) e Jack Kirby (1917-1994) como uma homenagem à mitologia nórdica. Em vez das intrigas palacianas à la Shakespeare de Thor (2011), realizado pelo shakespeariano Kenneth Branagh, fomos brindados com piadas de salão. Em vez de batalhas épicas e diálogos pomposos, assistimos à formação de uma inesperada dupla cômica entre o deus nórdico e o Hulk (Mark Ruffalo), com uma química que lembra a de Jack Lemmon e Walter Matthau em títulos como Um Estranho Casal (1968) e Dois Velhos Rabugentos (1993).
Em Amor e Trovão, Waititi, que assina com Jennifer Kaityn Robinson o roteiro bastante baseado nas HQs escritas por Jason Aaron a partir de 2012, investe ainda mais na comédia. A ponto de não encontrar um bom equilíbrio com as partes dramáticas da trama, diferentemente do que aconteceu em seus trabalhos anteriores, aí incluída a série de pirataria Nossa Bandeira É a Morte (2022), na qual atuou como diretor do episódio piloto, produtor executivo e intérprete do Barba Negra.
Mas esse desequilíbrio não é culpa apenas do cineasta: está na composição da fórmula Marvel a oscilação entre momentos supostamente graves, passagens humorísticas e cenas de ação cheias de efeitos visuais (desta vez, a propósito, não há nada memorável, pelo contrário; não há a inventividade de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, por exemplo). O negócio é manter o público distraído até as famigeradas duas cenas pós-créditos, que não raro acabam se tornando mais comentadas do que o próprio filme — um sintoma do quão fast-food se tornaram as atrações do chamado MCU: nem chegamos a sentir saciedade, já estamos de olho no próximo lanche. (Minispoiler: para pegar a graça de uma delas, convém ter assistido à série Ted Lasso. Aliás, eis outra sina da Marvel: as referências importam mais do que o filme.)
A sequência de abertura mostra a origem do vilão Gorr, encarnado por Christian Bale, o Batman da trilogia de Christopher Nolan (2005-2012). Ele se torna o Carniceiro dos Deuses após testemunhar o descaso divino perante a mais terrível dor de um pai: a morte de sua filhinha.
O surgimento desse vingador soturno é logo suplantado pela zombaria colorida. Como explica o alienígena de pedra Korg (dublado pelo próprio Taika Waititi), um entediado Thor agora é um astro das aventuras interplanetárias dos Guardiões da Galáxia, equipe à qual se juntou no final de Vingadores: Ultimato (2019). Pululam piadas visuais (atabalhoadamente, o Deus do Trovão destrói um palácio) e sonoras (Korg refere-se a Jane Foster, antiga paixão do protagonista, como Jane Fonda — e mais tarde vai chamá-la de Jodie Foster), ou as duas coisas juntos: como no célebre comercial dos caminhões Volvo com Jean-Claude Van Damme, Thor faz espacato, e escutamos a canção épica Only Time (2000), de Enya.
O ressurgimento de Jane Foster vai fazer girar de novo o Mjolnir — não é spoiler: como os trailers revelaram, ela vai empunhar o martelo mágico —, balançar o coração de Thor e desequilibrar ainda mais o filme. Primeiro porque comédia nunca foi o forte da atriz Natalie Portman, ganhadora do Oscar por Cisne Negro (2010) e indicada por Closer (2004) e Jackie (2016). Algumas interações com a Valquíria vivida por Tessa Thompson chegam a ser constrangedoras. Segundo porque o flashback que deveria mostrar como Jane e Thor eram romanticamente ligados é frouxo. Terceiro porque a personagem está com câncer em estágio avançado — mas mesmo seu estado de saúde é, por vezes, tratado de forma cômica.
Ou seja, aqui e ali Amor e Trovão acena com um peso emocional para logo em seguida diluí-lo — é um filme inconsistente, como uma... farofa — em uma cena de humor pastelão. Ou com o teatro de mentirinha em que Matt Damon, Luke Hemsworth e Sam Neill encarnam Loki, Thor e Odin — agora acompanhados pela comediante Melissa McCarthy no papel de Hela, a Deusa da Morte. Ou em diálogos nonsense que remetem ao lendário grupo inglês Monty Python. Ou em momentos de paródia à la A História do Mundo: Parte I (1981), de Mel Brooks — vide a passagem no Olimpo, onde Russell Crowe caricaturiza Zeus, a grande divindade da mitologia grega. Só não há piada mais adulta sobre orgias porque, afinal, este é um filme da Marvel.