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Em cartaz na Netflix desde quarta-feira (9), Identidade (Passing) pode não estar na lista dos 10 mais cotados ao Oscar 2022 de melhor filme elaborada pela centenária revista Variety, dos Estados Unidos. Mas este drama sobre racismo que marca a estreia da atriz Rebecca Hall como diretora dificilmente passará em branco quando a Academia de Hollywood anunciar os indicados, em 8 de fevereiro.
Seu lançamento começa a encorpar a relação dos títulos "oscarizáveis" já disponíveis no Brasil ou prestes a desembarcar. Se por um lado a relação da Variety divulgada no dia 11 era encabeçada por Belfast, drama com toques autobiográficos de Kenneth Branagh previsto somente para 20 de janeiro de 2022, por outro inclui Duna, de Denis Villeneuve, em exibição nas salas de Porto Alegre; Vingança & Castigo, faroeste negro de Jeymes Samuel em cartaz na Netflix; Ataque dos Cães, dirigido por Jane Campion e estrelado por Benedict Cumberbatch, Jesse Plemons e Kirsten Dunst, que estreia em 1º de dezembro na mesma plataforma de streaming; e King Richard: Criando Campeãs, de Reinaldo Marcus Green, sobre o pai das tenistas Serena e Venus Williams (interpretado por Will Smith), a partir de 2 de dezembro nos cinemas.
Ao lado de A Filha Perdida (The Lost Daughter), outra estreia de uma atriz — Maggie Gyllenhaal — na direção, que chega ao Brasil na segunda quinzena de dezembro, Identidade lidera as indicações no Gotham Awards. Destinado a produções de baixo orçamento (o teto é de US$ 35 milhões), é considerado um termômetro para o Oscar, porque abre a temporada de premiações nos Estados Unidos — a cerimônia está marcada para 29 de novembro. Concorrer gera, no mínimo, zunzunzum sobre o filme. Entre as obras que venceram o Gotham, estão cinco ganhadores do Oscar: Guerra ao Terror (2009), Birdman (2014), Spotlight (2015), Moonlight (2016) e Nomadland (2020). Identidade disputa cinco troféus: melhor filme, o Bingham Ray para diretores estreantes, roteiro, melhor atuação principal (Tessa Thompson, a Valquíria do Universo Cinematográfico Marvel) e melhor atuação coadjuvante (Ruth Negga, que disputou o Oscar de atriz por Lovin: Uma História de Amor, de 2016).
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Trata-se da adaptação de um romance publicado em 1929 pela escritora estadunidense Nella Larsen. É ambientado na Nova York dos anos 1920 e conta a história de duas mulheres que, depois de crescerem juntas, se reencontram na vida adulta. Irene (Tessa Thompson) se identifica como negra e está casada com um médico negro e bem-sucedido, Brian Redfield (André Holland, de Moonlight), que sonha em se mudar para o Brasil, um país onde, segundo ele, não há racismo. Clare (Ruth Negga) se passa por branca e tem um marido rico e preconceituoso, John Bellew (Alexander Skarsgård, de A Lenda de Tarzan). O elenco central se completa com Bill Camp (das minisséries The Night Of e O Gambito da Rainha), no papel de Hugh Wentworth, um escritor branco que é amigo dos Redfields, com quem frequenta bailes negros.
Atriz de filmes como Vicky Cristina Barcelona (2008), Christine (2016) e Um Dia de Chuva em Nova York (2019), a inglesa Rebecca Hall, 39 anos, disse que fazer Identidade a ajudou a entender a complicada história de sua família. Filha de um diretor de teatro e telefilmes, Peter Hall, e de uma cantora de ópera estadunidense, Maria Ewing, ela tinha 20 e poucos anos quando descobriu que seu avô materno era um homem negro que adotou a identidade branca e que criou os filhos como brancos.
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Chamada de passing em inglês, a atitude não era incomum para negros de pele clara que desejavam escapar da discriminação e da segregação racial. Por consequência, apontou Rebecca, "muitas pessoas não sabem que isso acontecia porque era algo que necessariamente precisava ficar escondido". Um exemplo notório é o do cartunista George Herriman (1880-1944). Apenas em 1971 descobriu-se que o criador da tira Krazy Kat não era branco. Tratava-se de mais um fruto de uma miscigenação forçada ou, nas palavras usadas pelo escritor estaunidense Mat Johnson para descrever o protagonista da HQ Incognegro (2008), lançada neste ano no Brasil, "resultado de uma tradição sulista sobre a qual ninguém gosta de falar. Escravidão. Estupro. Hipocrisia".
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As duas personagens de Identidade poderiam se passar por brancas, como as cenas iniciais revelam sobre Irene, mas ela resolveu seguir um caminho oposto ao de Clare. O protagonismo da primeira sugere uma postura reprovadora em relação à segunda, mas Rebecca refuta essa visão.
— Não se trata de criticar aqueles que optaram pelo passing, mas de criticar uma sociedade que julga a construção que uma pessoa faz de si mesma — ela disse em entrevista. — Existem as coisas em que pensamos que acreditamos, a pessoa que pensamos que devemos ser, que a sociedade quer que sejamos. E há o que realmente queremos ser, o que desejamos ser. E às vezes isso pode ser uma grande zona de conflito, e às vezes significa que estamos escondendo nosso verdadeiro eu.
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Rebecca decidiu filmar em preto e branco por três motivos algo contraditórios: praticidade, poesia e ironia. Sem cores, fica mais fácil acreditar nas ilusões dos coadjuvantes a respeito de Irene e Clare. Sem a "realidade" de um filme colorido, a diretora pode trabalhar com a "abstração" que ela diz ajudar a entender verdades sobre a humanidade.
— E a grande ironia de um filme em preto e branco é que não é preto e branco: é cinza _ afirmou Rebecca, aludindo às nuances e às contradições que nos impedem ou deveriam nos impedir de definir uma pessoa apenas por suas características físicas.
Amparada pela belíssima direção de fotografia assinada pelo espanhol Edu Grau e pela melancólica trilha sonora composta pelo músico inglês de R&B e jazz experimental Devonté Hynes, Rebecca Hall conduz a trama com uma delicadeza que não esconde as tensões. Tanto as decorrentes do reencontro de Irene e Clare quanto as raciais, que marcam as relações na sociedade dos Estados Unidos de ontem e de hoje. Há sempre uma ameaça subjacente (e aqui não estamos falando apenas de racismo e de violência), um perigo latente — vide a cena em que Brian, na companhia dos dois filhos do casal, lê as notícias policiais. Em consonância com a pacienciosa construção dessa atmosfera, a diretora estreante investe em elipses e em não-ditos e permite a seu elenco (especialmente Thompson, Negga e Holland) explorar gestos e sutilezas para expressar a turbulência emocional dos personagens.
Eis um pequeno — uma hora e 38 minutos de duração, menos de 20 atores, US$ 10 milhões de orçamento, formato quadrado (ou seja, a imagem não ocupa toda a tela) — grande filme.