Estou vendo uma série pirata — Nossa Bandeira É a Morte (Our Flag Means Death, no original) — que todo mundo pode ver.
Na verdade, quase todo mundo.
Primeiro, é preciso ser assinante da HBO Max, plataforma de streaming que lançou os primeiros três episódios na semana passada. Mais três vão ao ar na quinta-feira (10), outros dois no dia 17, e a temporada inicial se encerra em 24 de março, totalizando 10 capítulos.
Em segundo lugar, convém estar familiarizado com o tema da pirataria — no caso, a legítima: os bucaneiros e corsários que viveram uma época de ouro (duplo sentido intencional) entre os séculos 17 e 18. No cinema, saqueadores que combinavam ousadia, malícia e vigor atlético eram muito populares nos anos 1930, 1940 e 1950 — vide Capitão Blood (1935), de Michael Curtiz, com Errol Flynn, O Cisne Negro (1942), de Henry King, com Tyrone Power, e Pirata Sangrento (1952), de Robert Siodmak, com Burt Lancaster. Após naufrágios como Piratas (1985), de Roman Polanski, e A Ilha da Garganta Cortada (1995), de Renny Harlin, foram amaldiçoados tipos com perna-de-pau, tapa-olho e uma garrafa de rum na mão. Que voltaram a ser um tesouro graças à franquia baseada em uma atração do parque Disney World: Piratas do Caribe. Lançados entre 2003 e 2017, seus cinco filmes arrecadaram US$ 4,5 bilhões, conquistaram nove indicações ao Oscar (venceu apenas uma vez, na categoria de efeitos visuais, com O Baú da Morte) e transformaram em ícone o Jack Sparrow interpretado por Johnny Depp — sempre zombando dos outros e não raro se acovardando.
O terceiro pré-requisito para o espectador de Nossa Bandeira É a Morte é saber que a abordagem é muito mais ridicularizadora (ainda que com toques de afetividade e algum derramamento de sangue) do que aquela vista em Piratas do Caribe. Se os filmes investiram em cenas de ação, efeitos visuais e duração excessiva (Até o Fim do Mundo tinha quase três horas), aqui a aposta é no típico formato de série cômica. Cada episódio tem não mais do que 30 minutos, e até pode ser assistido separadamente, embora haja uma história maior sendo desenrolada.
A pegada é semelhante à da ótima animação em massinha Piratas Pirados! (2012). Naquele filme de Peter Lord, o Capitão Pirata precisa provar seu valor, derrotando os rivais Black Bellamy e Cutlass Liz em uma espécie de gincana na qual ele e sua tripulação vão se envolver com tipos históricos, como a Rainha Vitória e o explorador Charles Darwin. Nossa Bandeira É a Morte é inspirada em um personagem real, Stede Bonnet (1688-1718), um aristocrata de Barbados, no Caribe, que abandou seus privilégios, sua esposa e seus filhos para viver uma vida de corsário (o motivo ainda não foi bem explicado na série). Sem traquejo para a truculência — ele se autointitula Pirata Cavalheiro e lê histórias para seus subordinados dormirem —, Stede (encarnado por Rhys Darby, mais conhecido como dublador) também precisa provar sua capacidade para a função. E se no longa animado havia um Pirata Surpreendentemente Curvilíneo, no seriado da HBO Max há Jim, que esconde a identidade feminina sob seu silêncio, sua barba e seu nariz postiços. A curiosidade é que essa personagem é vivida por Vico Ortiz, artista que se define como não binário e de gênero fluido.
Os responsáveis por Nossa Bandeira É a Morte têm experiência em cruzar a comédia com outros gêneros. O estadunidense David Jenkins, o criador, é o mesmo do seriado People of Earth (2016-2017), sobre um grupo de apoio a pessoas que foram abduzidas por alienígenas. O neozelandês Taika Waititi, que dirige o primeiro e o quinto capítulos, é produtor executivo e interpreta o Barba Negra (em inglês, Blackbeard), traz no currículo O que Fazemos nas Sombras (2014), um falso documentário sobre o mundo dos vampiros, Thor: Ragnarok (2017), uma versão mais humorística do Deus do Trovão, e Jojo Rabbit (2019), que, sem esquecer dos horrores do nazismo, satiriza Hitler.
Jenkins, Waititi e o espanhol Nacho Vigalondo (diretor dos episódios 2, 3 e 4) contam com um baita tripulação. Ewen Bremner (o Spud de Trainspotting) provoca gargalhadas com qualquer fala de Buttons, graças ao forte sotaque escocês. Joel Fry (de Yesterday e Cruella) é Frenchie, o menestrel do navio Revenge. Nathan Foad encarna Lucius, o escriba de Stede. Samson Kayo (de 2020 Nunca Mais e Death to 2021) interpreta Oluwande, a voz da razão. Matthew Maher é Black Pete, o primeiro a sugerir um motim. Samba Schutte vive Roach, o cozinheiro que, a mando do capitão, prepara tapas para servir a uma embarcação espanhola — mas bem que ele preferia estar torturando reféns. E podemos matar a saudade do grandalhão Kristian Nairn — como ele tem 2m13cm de altura, você reconhecerá na hora o Hodor de Game of Thrones.