Em cartaz na Apple TV+, Severance — que no Brasil ganhou o título de Ruptura — é uma das três séries atuais que estou acompanhando. As outras duas são Pam & Tommy, no Star+, e Suspicion, também na Apple TV+.
As três são beneficiadas pela estratégia híbrida de distribuição, uma mistura entre o padrão Netflix e a moda antiga dos canais de televisão: após a estreia turbinada, com dois ou três episódios, as plataformas de streaming passam a lançar apenas um capítulo novo por semana.
Essa tática pode frustrar o espectador que curte maratonar seriados. Mas tende a se mostrar duplamente positiva — tanto para a obra quanto para o público.
Por um lado, dá mais tempo de vida para a série. Cada episódio vira um acontecimento, gera repercussão — como visto, por exemplo, com a terceira temporada de Succession, da HBO Max, em 2021. Ao contrário do que acontece com as atrações despejadas por inteiro — alguém aí ainda lembra de O Mar da Tranquilidade ou de Arquivo 81? Certamente seus mistérios teriam engajado mais a audiência se a Netflix liberasse um episódio por semana.
Na outra ponta, o método a conta-gotas tira dos nossos ombros a pressão para assistir a tudo atabalhoadamente, sem pausa para refletir, combatendo o sono para não perder o trem do hype— o estrangeirismo que se adotou para substituir "dando o que falar" — e não ficar tão exposto a spoilers nas redes sociais.
Entre os três seriados, Ruptura é sem dúvida o mais ambicioso artisticamente e o que mais tem algo a dizer sobre nós. Estão na pauta questões que afligem o ser humano desde o surgimento do trabalho, mas que foram realçadas pelas lâmpadas led dos ambientes corporativos e pelo incremento do home office no contexto da pandemia. É a série da era do burnout, que desde 1º de janeiro de 2022 passou a ser reconhecido como doença.
Criada pelo estreante Dan Erickson, é uma espécie de cruza sofisticada entre The Office (2005-2013), Black Mirror (2011-2019) e Homecoming (2018-). A porção comédia de escritório puxa mais para o humor absurdo ou mesmo para o riso nervoso; a ficção científica espelha inquietações reais, com novas tecnologias potencializando anseios, crises e vícios da sociedade contemporânea; há drama e suspense por conta de algum tipo de lavagem cerebral.
Ruptura tem nove episódios na primeira temporada — o quarto vai ao ar nesta sexta-feira (4), e as gravações de uma segunda fornada devem começar ainda em março. Ben Stiller dirige os três primeiros e os três últimos capítulos — os três do meio ficaram com a norte-irlandesa Aoife McCardle, que fez videoclipes de artistas como Bryan Ferry, Coldplay, Jon Hopkins e U2.
Para interpretar dois dos personagens principais, Stiller escalou nomes que já atuaram sob sua direção. Adam Scott, o protagonista, esteve no filme A Vida Secreta de Walter Mitty (2013) — ironicamente, em um papel invertido: se naquela adaptação do clássico conto de James Thurber (1939) encarnava um detestável gerente encarregado de enxugar a folha de pagamento de uma empresa, em Ruptura vive um chefe de departamento que, dadas as circunstâncias, mostra-se empático. A vilã da trama é Patricia Arquette, da minissérie Escape at Dannemora (2018). Trata-se de outra escolha irônica: se na produção anterior ela ajudava dois detentos a fugir de um presídio, aqui está empenhada em não deixar ninguém sair da corporação que comanda.
A tal corporação, a Lumon Industries, situada em uma gelada cidadezinha dos Estados Unidos, descobriu uma maneira de separar, cirurgicamente, a vida profissional da pessoal. À primeira vista, parece uma relação ganha-ganha: ninguém leva para o escritório os problemas domésticos, ninguém volta para casa com o estresse do trabalho.
Mas é claro que há implicações éticas, dilemas morais e consequências psicológicas na divisão entre os innies (as personas que só vivenciam sua própria existência dentro da Lumon) e os outies (as personas externas, que não têm lembrança alguma de suas rotinas internas). Na ausência de conexão cultural e emocional com o mundo lá fora, os innies estão preparados para serem totalmente diligentes — em troca de recompensas ridículas — e zelosamente leais, enxergando o fundador da empresa, Kier Egan, como uma figura messiânica e o manual do funcionário como um texto religioso. E se ao ir embora para casa as práticas nocivas em que você está envolvido são apagadas de seu cérebro, por que não voltar a passar o crachá no dia seguinte? Se o seu eu exterior desconhece sua infelicidade dentro das paredes corporativas, como abandonar o emprego? (A propósito, a série explica por que é impossível pedir demissão durante o expediente.)
O personagem de Adam Scott é Mark Scout, que topou participar do programa de ruptura entre as memórias pessoais e as memórias profissionais para não deixar que o luto pela morte da esposa dominasse o seu dia inteiro (e, por conseguinte, interferisse no seu desempenho no trabalho). Ele acaba de ser promovido após o repentino e misterioso desligamento de um amigo, Petey (Yul Vasquez). Mas no episódio inicial o outie do protagonista vai encontrar um homem que diz ser Petey e que começará a revelar podres da Lumon.
Uma das primeiras tarefas de Mark no cargo é recepcionar uma nova empregada do seu setor, o de "refinamento de macrodados" — nem ele nem seus subordinados (os personagens sinistramente engraçados de John Turturro e Zach Cherry) sabem exatamente o que fazem; só ficam observando números em uma tela de computador retrô e pescando-os para um arquivo quando depararem com uma formação considerada "perigosa".
A nova contratada é Helly, em ótima atuação de Britt Lower, a protagonista feminina do seriado de comédia romântica Jovem Solteiro à Procura (2015-2017). Ela tentará lutar contra o sistema, mas vai esbarrar em uma esmerada burocracia, em uma altíssima tecnologia e em um dedicado supervisor dos innies, Milchick — papel de Tramell Tillman, outro destaque em um elenco que inclui o veterano Christopher Walken, 78 anos, em sua segunda série seguida (a anterior foi The Outlaws, lançada em 2021) após décadas de dedicação aos filmes.
A ambientação é mais um ponto alto de Ruptura. Os figurinos puxam bastante para o azul, cor associada à tristeza (não é à toa que o ritmo musical se chama blues). A tecnologia anacrônica é um indicativo de que os empregados da Lumon só podem usar os computadores para o trabalho, sem comunicação com o mundo exterior ou acesso a redes sociais. Os corredores são claustrofóbicos, labirínticos e intermináveis. E não há janelas nos melancólicos escritórios — que são imensos, para reduzir o indivíduo perante a instituição, e vazios, como um símbolo da vida sem vida dos innies.