Termo que figura entre os mais pesquisados no Google em 2021, o burnout vem sendo debatido intensamente ao longo da pandemia e logo alcançará novo patamar. A partir de 1º de janeiro, estará listado na 11ª versão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), espécie de glossário que atribui códigos às mais diversas enfermidades. A expectativa de profissionais de saúde que lidam com pacientes nessa condição é a de que haja melhor entendimento do tema para prevenção e também tratamento — o que envolve o correto acolhimento do indivíduo e mudanças no modo de vida e no ambiente de trabalho.
A condição pode ser descrita como síndrome de estresse crônico relacionado ao trabalho que não foi administrado com sucesso. Especialista no tema, a psicóloga clínica Ana Maria Rossi, presidente da International Stress Management Association (Isma-BR), espera que a introdução do burnout na CID-11, por iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), contribua para o desenvolvimento de esforço conjunto, que divide a responsabilidade entre o trabalhador e o empregador.
— Espero que isso ajude a estabelecer parâmetros ao empregador para respeitar limites. Se o empregado foi contratado para turnos de nove horas, então não são 11 horas, nem 12 horas se houver uma crise. Espero que isso possa amparar o trabalhador. Ele não está sendo incompetente, fracote, queixoso, uma pessoa que usa os sintomas para fugir do trabalho. Ele, isso sim, desrespeitou seus limites por períodos frequentes e prolongados. Quer dizer também que, se o empregador não respeitar os limites do empregado, é responsabilidade do empregado respeitar os seus limites. O desrespeito é deles, mas a saúde é minha, e o problema pode ser irreversível. A última responsabilidade, realmente, é do trabalhador — detalha Ana Maria.
Falar de burnout não é simples. Além da imagem equivocada da pessoa debilitada que não “aguenta o tranco”, outra crença equivocada amplamente difundida é a de que os workaholics são mais propensos a sofrer da síndrome por trabalharem demais, o que não procede — ou as pessoas que de fato se satisfazem com expedientes de 14, 15 ou 16 horas viveriam num estado contínuo de burnout.
Consideram-se seis causas principais para o burnout: sobrecarga de trabalho (acompanhada de falta de recursos para desempenhá-lo e tarefas para as quais não se tem competência, o que pode gerar angústia, ansiedade e estresse crônico); falta de controle (muita responsabilidade e pouca autonomia para tomar decisões); recompensas insuficientes (remuneração, retorno positivo de chefias); ruptura na comunidade (falta de apoio e confiança e conflitos na equipe); falta de justiça (determinado funcionário é promovido não por ser o mais qualificado, mas por manter laços de amizade com o superior, situação que gera desinteresse e desmotivação); conflitos de valor (um vendedor de seguros que abomina o produto que comercializa, uma atividade que faça a pessoa sentir que está sendo antiética etc.).
— Os seis fatores não precisam coexistir. A combinação mais responsável pelo burnout é a da sobrecarga de trabalho com a recompensa insuficiente — pontua a psicóloga.
As empresas devem investir em prevenção, que pode ser de três tipos. A prevenção primária diz respeito a reduzir ou eliminar os fatores estressores ocupacionais, como a falta de recursos para determinados projetos. Como prevenção secundária, está o papel de ajudar a pessoa a lidar com certas situações, aliviando o prejuízo que está sendo causado ao funcionário — oferecer alguma atividade física ou cardápio mais saudável no refeitório, por exemplo. E a prevenção terciária surge quando já existe dano, ou seja, a empresa ajuda a tratar os empregados que sofrem com abalo mental.
Efeitos da pandemia
Quanto ao impacto da pandemia nos casos de burnout, Ana Maria observa que foi grande. A Isma-BR não realiza pesquisas sobre o tema desde 2019, devido às alterações impostas pelo cenário da crise sanitária. As condições de trabalho representam desafios diferentes: existem pessoas que se adaptaram às atividades realizadas de maneira remota, enquanto outras não suportam a solidão. No retorno ao modelo presencial, também aparecem diferenças marcantes: enquanto alguns estão felizes pela retomada, outros sofrem intensamente.
— Está havendo um período de ajuste agora. Empresas devem priorizar o bem-estar físico do trabalhador que retorna ao ambiente de trabalho, diferenciar quem quer voltar e quem não quer, buscar um núcleo de apoio para quem está se sentindo muito fragilizado, dar mais reconhecimento aos funcionários, mudar o que não funciona — enumera Ana Maria.
Impactos jurídicos
A inclusão do burnout na CID-11 também pode ter impacto no âmbito jurídico, uma vez que muitas ações trabalhistas se referem ao tema. Maurício de Carvalho Góes, advogado trabalhista e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e da Unisinos, recorda que vêm sendo ajuizadas na Justiça do Trabalho, há anos, ações com pedidos indenizatórios em consequência da ocorrência da síndrome de burnout e também buscando o reconhecimento como doença laboral, o que acarreta a garantia de emprego.
Quanto a indenizações por danos materiais e morais, conforme Góes, também já havia ações de trabalhadores desligados ou não das empresas que buscam indenização pela caracterização da síndrome, o que depende de provas contundentes. O advogado acredita que o impacto maior será na esfera corporativa, com uma mudança de postura por parte do empregador.
— A pandemia, com o trabalho remoto, resgatou uma ideia que não é comum no direito do trabalho: a de não trabalhar só com prevenção, ou seja, com riscos que conheço, mas com precaução, com riscos que não conheço. Não é apenas o empregador contratar seu empregado e cumprir aquilo que está na lei pelos aspectos preventivos das normas regulamentadoras: entrega o equipamento de proteção individual e está resolvido. Em tempos modernos, esses problemas modernos que se transformaram em doença também se refletem significativamente no trabalho. O empregador deve ter mais cuidado com a questão humana — comenta o advogado.
Mas deve ocorrer, conforme Góes, da parte do Ministério Público do Trabalho e dos juízes do trabalho, uma interpretação protetiva do trabalhador em casos de dúvida.
— Agora há uma preocupação da OMS, autoridade no assunto, que está dizendo: atenção, empregadores, isso é uma realidade. Deixa de ser algo excepcional, casual, que poderia acontecer em situações específicas, para acontecer cada vez mais. Se entra no rol da OMS é porque efetivamente é algo que pode acontecer — comenta o docente universitário.
De acordo com Willian Machado, sócio do escritório de advocacia empresarial Fernandes Machado Business Law, o primeiro impacto da mudança para as empresas está relacionado ao afastamento do trabalhador e à estabilidade de um ano obtida no retorno. Ou seja, no período em que o empregado com a síndrome estiver afastado, seu contrato de trabalho permanece ativo e, ao retornar, ele não poderá ser demitido por 12 meses.
Assim, Machado considera que a inclusão do burnout na CID-11 seja algo negativo para as empresas contratantes porque, mesmo que não tenha prejuízo financeiro direto durante o afastamento, elas precisam arcar com outras despesas e lidam com situações de incerteza sobre como organizar seus quadros profissionais:
— A empresa vai ter um impacto financeiro porque, com um trabalhador afastado, será preciso contratar e treinar outra pessoa para a função e, quando o empregado que estava afastado retornar, terá que voltar para o cargo que ocupava antes. Então, ele talvez nem tenha mais função na empresa, mas estará vinculado por mais um ano com estabilidade e dispensá-lo se tornará muito caro.
É por isso que as ações preventivas são tão importantes, afirma o advogado. Para ele, as empresas que ainda não têm esse cuidado mais próximo, precisarão implementar políticas internas para melhorar a comunicação entre gestores e funcionários, criar uma pesquisa de clima e investir em feedbacks contínuos, a fim de identificar se seus trabalhadores estão tendo alterações de ânimo ou rendimento.
Na visão da advogada Clarisse de Souza Rosales, sócia do escritório Andrade Maia, o que cria receio nas empresas é o enquadramento automático da doença como algo relacionado ao trabalho e a possibilidade de não haver o contraditório — ou seja, a empresa não poder apresentar provas de que o que foi relatado pelo trabalhador não ocorreu daquela forma. Ela aponta que, em uma primeira análise, sem perícias, podem haver enquadramentos que não sejam 100% adequados para a síndrome.
— Antes, se a pessoa fosse diagnosticada com síndrome do pânico, por exemplo, ela teria que recorrer à justiça provar que seu quadro tem vinculação com o trabalho. Hoje, o burnout elimina a discussão se é ou não algo ocupacional — explica.
Sinais de alerta para a ocorrência de burnout
- Redução da produtividade e da qualidade dos resultados apresentados
- Absenteísmo: o funcionário passa a faltar ao trabalho
- Presenteísmo: o empregado vai trabalhar, mas se mantém mentalmente ausente, como se estivesse apenas “de corpo presente”
- Alta rotatividade de cargos e funções devido ao baixo rendimento
- Lesões mais frequentes por desatenção (cai de uma escada, por exemplo, ou se corta ao manusear um equipamento)
- Consultas e licenças médicas frequentes
- Exaustão contínua, que não passa com o tempo livre no final de semana ou nas férias
- Mudanças de apetite: passar a comer demais ou muito pouco
- Aumento no consumo de bebida alcoólica
- Problemas de sono (múltiplos despertares ao longo da noite, sono não reparador, pesadelos, intensa movimentação na cama)
- Dor de cabeça, azia, aumento da frequência cardíaca e da pressão